À própria sorte

População de rua em São Paulo e o coronavírus: ‘Não pegamos porque somos invisíveis’

Na periferia da cidade, um dos grupos mais vulneráveis à doença mostra que medidas da prefeitura não olham para todo o território. Trabalhadores da assistência social dizem vivenciar “caos” na rede

Clara Assunção/RBA
Clara Assunção/RBA
Moradores em situação de rua improvisam abrigo com lonas. Nestas condições, recomendações mínimas da OMS são inviabilizadas

São Paulo –  A notícia do novo coronavírus, responsável pela morte de mais de 50 mil pessoas em todo o mundo, chegou para a auxiliar técnica de enfermagem Socorro das Graças há duas semanas, no momento em que passava para pedir alimentos aos seus vizinhos do bairro Jardim Rincão, no distrito do Jaraguá, periferia da região noroeste da cidade de São Paulo. Ali, onde a vida corre praticamente em público, com casas coladas umas às outras e falta de espaço que só não é pior do que a ausência de privacidade, os moradores acharam melhor explicar a Socorro o significado da multidão sendo televisionada usando máscaras para cobrir parte do rosto.

“Num alimento e em uma coisa ou outra as pessoas ajudam e foi assim que eu fiquei sabendo, porque onde eu chego tem uma televisão ligada. (Agora) tenho medo, porque estou com baixa imunidade”, conta.

Há dois anos e meio, a auxiliar técnica fincou, sob o mato que cresce às margens do córrego do rio do Fogo na região, seu “barraco de plástico” – como ela chama –, erguido com a ajuda de alguns pedaços de madeira onde estão apoiados retalhos de uma lona preta. No espaço, de menos de três metros de largura, cabem apenas uma cama e os poucos pertences dela e de seu companheiro, o professor de capoeira Edmilson, mais conhecido como Chorô.

O motivo que a levou a deixar sua casa, em Perus, e mudar para as ruas do Rincão é o mesmo que coloca em situação de vulnerabilidade outros 10 vizinhos que residem em quatro barracos de lona. Pelo menos desde 2016 Socorro luta contra o uso problemático de crack, a principal droga consumida também na outra ponta do córrego, onde um grupo de aproximadamente 50 pessoas está em situação de rua. 

Ninguém veio

Acostumados a estarem apartados do centro, homens, mulheres e travestis, em sua maioria negros, são agora ignorados pelas políticas públicas. Mais de 20 dias após o anúncio do Ministério da Saúde, recomendações para o dia a dia, como lavar as mãos, higienizá-las e evitar aglomerações para reduzir o contágio da covid-19 ainda não ecoaram entre a maioria deles. 

“Ninguém (do serviço público) veio, não temos nada, nem luva, nem máscara, nada, nada. É como se a gente não existisse. Eu vivo doente e o Edmilson também, porque a gente não se alimenta, não tem como se alimentar, só quando a igreja ou alguma pessoa vem aqui trazer uma ajuda”, desabafa a auxiliar técnica de enfermagem, que conta com os conhecimentos de sua profissão para garantir a segurança possível dentro do cenário de adversidade.

“Aí embaixo da ponte (do córrego) tem um cano que desce, é lá que eu me lavo e pego água. Não é a água do córrego, é um cano que vem de lá, mas que também não serve para beber, porque tem um cheiro diferente, mas tem gente que bebe. Pego essa água para lavar as mãos”, explica. 

Os que ficaram alheios à pandemia, mesmo com os avisos dos moradores, foram forçados a saber quando encontraram o centro de compra de reciclagem do bairro fechado. “O vírus não pegou a gente ainda, não chegou nem perto, por causa disso, somos invisíveis”, diz Socorro. 

Membro da Fraternidade Missionária Emaús (FME) – o único grupo que trabalha junto a essa população de rua na região, com a distribuição de refeições diárias – Ernandes Teones destaca que tamanha exposição ao risco de coronavírus pode provocar um foco de infecção, agravando esse cenário de vulnerabilidade. “Eles bebem água na mesma garrafa, dividem talheres e há mulheres grávidas, pessoas soropositivos ou com sífilis”, relata.

Que ajuda?

Clara Assunção/RBA
O outro lado da margem do córrego onde moradores improvisam abrigo com lonas

De acordo com Teones, desde antes da atual emergência sanitária o grupo tenta junto à Secretaria Municipal de Saúde que agentes da Unidade Básica de Saúde (UBS) possam fazer o acompanhamento dessa população em situação de rua no bairro. Esse pedido, contudo, vem sendo ignorado. “E quando a subprefeitura de Pirituba vem, ela leva tudo embora, desarticulando nossas ações”, afirma.

Padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua, que vem ajudando o grupo com recursos, confirma o abandono do poder público nas bordas da cidade.

“Você vê a situação que está lá (no Jardim Rincão) e ninguém faz nada. A população em situação de rua está em muitos lugares, muitos que ninguém nem sabe onde eles estão. Então, São Mateus vai ter gente na rua, Brasilândia, a cidade é multicêntrica”, alerta o padre. 

Até o dia 18 de março as gestões municipal e estadual, com Bruno Covas e João Doria, respectivamente, ambos do PSDB, à frente do problema, não haviam apresentando nenhuma medida para proteger os que não têm moradia. Só após pressão de movimentos e entidades e da Defensoria Pública por novas diretrizes, a prefeitura anunciou medidas emergenciais, como a criação de seis novos equipamentos para acolhimento com funcionamento integral. 

Longe é um lugar que existe

Em locais centrais da cidade, com grande aglomeração, por exemplo, foram instaladas pias para higienização. Também foi realizada uma seleção de centros esportivos para acolher as pessoas em situação de rua, além de um Centro de Acolhida Especial para quem for diagnosticado com a doença e um núcleo de convivência emergencial na região da Nova Luz. 

As medidas, no entanto, ainda esbarram em problemas estruturais, como a desigualdade. Com a concentração de equipamentos nas regiões centrais ou do centro expandido, como Sé, Mooca, Lapa, Santana e Santo Amaro, em áreas muito isoladas o serviço público não chegou. 

“Essa população fica muito mais ainda invisível nas periferias”, aponta o coordenador nacional do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) Darcy da Silva Costa. “Os serviços nas bordas são muito reduzidos, tanto na questão das doações, que também são bastante raras, como nos serviços da própria prefeitura”, diz.

O coordenador do MNPR ressalta ainda que, apesar do centro ainda concentrar a maior parcela dessa população, pelo menos desde 2017 percebe-se uma migração para as franjas da cidade. A suspeita é de que este deslocamento estaria relacionado à truculência policial e ao projeto de higienização iniciados por Doria, quando ele ainda era prefeito. 

Censo que não vê

Isso explica em parte, por exemplo, porque os movimentos sociais contestam a estimativa do censo municipal do ano passado, que apontou para quase 25 mil pessoas em situação de rua, quando as entidades indicam que o contingente ultrapassa os 30 mil na capital paulista. “É uma pesquisa voltada muito mais para a região central, e nas regiões das bordas da cidade eles não conseguiram fazer um levantamento dessa população. Mas a gente vê no Jaraguá em várias regiões que essa população está lá, esquecida”, analisa Costa. 

A Fraternidade Missionária Emaús contabiliza que só no Rincão há pelo menos quatro pontos em que há pessoas em situação de rua e que, apesar do constante trânsito, o número gira em torno de 60 a 80 moradores sem-teto. Para todo o distrito do Jaraguá, no entanto, o censo da prefeitura aponta que há apenas nove pessoas nesta condição. 

Censo Municipal/Reprodução
Fraternidade Missionária Emaús calcula que apenas em um bairro do Jaraguá há mais de 60 pessoas em situação de rua. Censo Municipal, no entanto, contabiliza que em todo distrito têm apenas nove pessoas nessa condição

Já no distrito da Brasilândia, na zona norte, mencionado pelo padre Júlio, os dados mostram que há 113 pessoas em situação de rua. Em São Mateus, no extremo leste da capital paulista, essa população é de 132 pessoas. O número cresce na Cidade Tiradentes e Itaquera, com 174 e 178, respectivamente. Enquanto os distritos Campo Limpo e Capela do Socorro, na zona sul, contabilizam um total de 127 e 153 pessoas na rua, cada um. 

“É um público que se chegar em um grau de contaminação (do coronavírus), isso vai ser muito ruim para a cidade, porque será a prova de que vamos perder totalmente o controle da pandemia”, observa o coordenador nacional do MNPR. 

Trabalhadores da assistência social vivenciam caos

Mas nem mesmo a centralização das ações por parte do poder municipal ainda é suficiente para atender toda a população, principalmente no distrito da Sé, onde o número de pessoas em situação de rua ultrapassa os 11 mil. 

“O mais urgente é o acolhimento, tirar essa população das ruas, mas não da maneira convencional. Porque a estrutura que tinha para a população em situação de rua era extremamente de tutela, de controle, não respeita a autonomia”, observa o coordenador da Pastoral do Povo de Rua. 

Padre Júlio também afirma que, entre os que estão em centros de acolhida, há muitas queixas com relação às condições de higiene, “muito precárias”, descreve. 

O coordenador nacional do MNPR, Darcy da Silva Costa, também confirma as impressões do pároco, acrescentando que os profissionais estão atuando inclusive sem os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). “Vejo o pessoal da abordagem trabalhando, de jaleco verde na rua, muitos deles estão sem máscaras, luvas”, relata. 

A notícia de que nos últimos 15 dias a rede de saúde da capital paulistana afastou 559 trabalhadores da área por motivos de saúde deixou apreensiva uma funcionária da Assistência Social que pediu para não ser identificada. Segundo ela, os trabalhadores não estão usando insumos para proteção, “porque não têm o suficiente para todos. Esse é o maior drama para nós, da assistência social”, destaca.

Sem condições

No último dia 24, os funcionários receberam a orientação por meio de nota técnica da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), informando que todas atividades de atendimento ao público devem utilizar máscaras, álcool em gel, bem como outros materiais e insumos recomendados. O documento também prevê que os assistentes devem fornecer máscaras, sabão líquido ou preparação alcoólica, lenços de papel e luvas para as pessoas em situação de rua acolhidas pela rede pública.

A pandemia fez com parte das atividades da rede socioassistencial fosse suspensa, mas serviços como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro POP), por exemplo, continuam mantidos, mas sem as condições de proteção. 

Uma outra assistente social, que aceitou falar com a reportagem sob condição de anonimato, conta que antes mesmo da aprovação da lei que destina renda emergencial aos trabalhadores informais, autônomos e pessoas sem renda fixa, publicada nesta quinta-feira em edição extra do Diário Oficial da União (DOU), as portas dos Cras já estavam lotadas. De acordo com ela, os funcionários não receberam orientações sobre como o órgão deve atuar em relação à medida. 

“Recebemos pouco álcool em gel para dividir entre Cras, Creas e os serviços de abordagem de rua. Não tivemos nada para os centros de acolhida. Recebemos pouquíssimas máscaras também, então a gente ou está usando a mesma para várias coisas ou por muito tempo para economizar, ou as pessoas conseguem comprar com seu próprio dinheiro”, desabafa a funcionária. 

Falta de informações

A trabalhadora frisa que a Smads falta com um “fluxo claro de informações”, principalmente com as equipes do Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS), que estão em contato direto com os usuários, expondo ambos ao risco de contágio. “A secretaria vai dizendo que gente tem de orientar, que é, por exemplo, o Seas que tem que levar e deixar em tal lugar, mas esse ‘levar’ é como, se eu não tenho condição? Se eu não tenho EPI? Quem organiza isso?”, questiona. 

“Não consigo dizer para você se são cinco, 10 ou 15 profissionais. No que diz respeito à assistência, a cidade está um caos”, resume a trabalhadora, acrescentando que há centros de acolhimento sem sabão, quando não até papel. “Falta orientação da secretaria, falta comunicação dos procedimentos, falta EPIs, falta responsabilidade dela na condução de tudo isso. A Smads vai dizendo como fazer, mas não como operacionalizar. Como efetivar o que está na letra da norma e da portaria assim?”, contesta a assistente. 

As denúncias dos trabalhadores têm sido acolhidas pelo Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep), que já notificou em março a Smads com reuniões e ofícios. Ainda assim, a pasta não apresentou um plano de contingência.

Com os tropeços da gestão pública, o coordenador nacional do Movimento Nacional da População em Situação de Rua reflete sobre a lição que esse momento de emergência na saúde pública alerta, a importância de uma direção que dê segurança e garantia aos cidadãos de que o Estado está preparado para enfrentar contratempos. 

“A gente não tem um protocolo hoje, não vê uma cidade estruturada para acolher. Estamos cada vez crescendo a população em situação de rua e não conseguimos resolver esse problema porque não existe interesse”, lamenta. 


As amarras 

Em nota à RBA, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento não apresentou nenhum plano ou medida para o atendimento da população em situação de rua nas regiões periféricas. 

Informou que as equipes do SEAS “realizam buscas 24 horas por dia para identificar pessoas ou famílias em situação de rua e oferecer acolhimento na rede socioassistencial. A atuação é por meio de escuta qualificada, visando à aproximação, construção e fortalecimento de vínculos, atendimentos sociais, orientações e encaminhamentos. Das 22h às 8h, a abordagem é realizada pela Coordenadoria de Pronto Atendimento Social (CPAS). Importante frisar que elas não são obrigadas a aceitar os serviços oferecidos.”

Sobre as queixas dos usuários dos Centros de Acolhida, alegou que eles “são higienizados constantemente e mantidos com as janelas abertas, nos quartos as camas foram colocadas em distância segura. Todos os eventos agendados nos serviços foram cancelados e as visitas suspensas.” E que os serviços da rede “intensificaram as orientações sobre os cuidados com a higiene para os conviventes.”

O órgão, no entanto, não respondeu à reportagem quanto à falta de proteção dos trabalhadores da rede e a demanda por insumos. A RBA encaminhou pedido de nota à Secretaria Municipal de Saúde, por três vezes nesta semana, para saber sobre a solicitação de acompanhamento aos moradores em situação de rua no bairro Jardim Rincão. A pasta, no entanto, não retornou aos questionamentos da reportagem. 

Doações e solidariedade

Na ausência de iniciativas mais efetivas por parte do poder público, diversos movimentos e projetos têm apoiado parcelas da população mais vulnerável, com doações de alimentos e materiais para higiene, diante da crise sanitária e econômica desencadeada pela pandemia de coronavírus.

A Fraternidade Missionária Emaús (FME) também arrecada itens para o povo de rua do Jardim Rincão. O endereço para levar alimentos ou insumos é a sede do grupo, na rua Maria da Cruz Cunha, 216 – Jardim Shangrila ou na Comunidade São Francisco de Assis, rua Máximo Barbosa, 66, no Jardim Taipas. 

Clara Assunção/RBA
“Ninguém (do serviço público) veio, não temos nada, nem luva, nem máscara, nada, nada. É como se a gente não existisse.”, lamenta Socorro, que está em situação de rua há mais de dois anos