Em São Paulo

Prefeitura transfere população de rua da Cracolândia em ônibus lotado

Em meio à pandemia, administração fecha último equipamento que atendia na região e deve deixar centenas de desassistidos, segundo movimentos

Reprodução
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Transferência provocou ainda aglomeração entre usuários que voluntariamente buscaram ser transferidos para unidade do Glicério

São Paulo – A prefeitura de São Paulo fechou na manhã desta quarta-feira (8) o último equipamento que ainda oferecia água, alimentação e lugar para dormir às pessoas que vivem em situação de rua e em uso de substâncias psicoativas na área conhecida como Cracolândia, no bairro Campos Elíseos, na Luz, região central da capital paulista. A desativação da unidade de Atendimento Diário Emergencial (Atende 2) foi acompanhada por dezenas de policiais e guardas armados.

A ação ocorre no momento em que o estado de São Paulo é epicentro da disseminação do coronavírus no Brasil e que o governo pede à população que evite aglomeração e mantenha condições de higiene para evitar o contágio da doença. 

Movimentos sociais, que monitoraram a ação, afirmam que não houve truculência nem registros de ações compulsórias por parte da prefeitura. “O que demonstra que quando existe vontade política não há violência no território, embora seja uma violência fechar esse equipamento”, critica a coordenadora geral do Centro de Convivência É de Lei, Maria Angelica Comis. 

Segundo a gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB), o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (Siat) II, no Glicério, também no centro da cidade, deve acolher, de forma prioritária, essa população que era usuária do espaço da Luz. O novo local, no entanto, está localizado a mais de cinco quilômetros de distância da região da Luz.

O município chegou a oferecer ônibus para levar as pessoas. Mas vídeos enviados à RBA mostram que os veículos saíram lotados e que houve aglomeração na espera pelo serviço. 

“Em tempos de coronavírus as pessoas em situação de vulnerabilidade têm que escolher entre ficar abandonadas ou serem levadas para outras poucas vagas em um lugar que não têm nenhum vínculo. Tudo acontecendo sob um grande desperdício de dinheiro público em helicópteros, viaturas e dezenas de policiais e guardas armados”, contestou em nota o Coletivo Craco Resiste que atua na cena de uso da Luz.

Limpeza social

O novo equipamento também atuará com 100 vagas a menos que o Atende 2, que operava com capacidade diária para 300 pessoas, de acordo com informações disponíveis s no site da prefeitura sobre o serviço que integra o programa Redenção. Na unidade do Glicério haverá um centro de acolhida 24 horas com 200 vagas – 100 para atendimento diurno e 100 para pernoite. 

Apelidada de “limpeza social”, a decisão do município também pegou diversas entidades de surpresa como a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, a Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas e o Fórum Mundaréu da Luz que, no último dia 31 de março chegaram a se reunir com a Secretaria Geral da prefeitura, apresentando reivindicações diante da falta de medidas do poder público para reduzir os danos sociais e à saúde causados pela pandemia sobre essa população mais vulnerável. 

Maria Angélica conta que, na ocasião, a gestão Covas se omitiu quanto ao fechamento do Atende 2 que chegou a ser previsto, mas no final do ano passado, por estar sob influência do tráfico de drogas, o que não foi concretizado apesar do anseio da especulação imobiliária que há anos acomete a região.

“Não tocamos no assunto do fechamento na reunião porque a gente tinha entendido que esse equipamento ficaria aberto, não porque era um equipamento ideal, tinha bastante precariedade, mas porque atendia à população na região. Nós entendemos que a prefeitura acaba pecando de fechar exatamente nesse momento em que precisam ser ampliados os serviços. E essa mudança diz muito da perversidade da política”, lamenta a coordenadora do É de Lei.

A socióloga Nathália Oliveira, que atua na Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, destaca em entrevista ao repórter Cosmo Silva, da Rádio Brasil Atual, que os governos estadual e municipal deveriam adotar sob o território “ações humanitários, de respeito à vida e de garantia de direitos, que efetivamente mude a vida daquelas pessoas”, sujeitas ao risco de contágio tanto pela condição de sem-teto como pelo uso problemático de drogas, em que muitas vezes compartilham objetos.

Nathália ainda acrescenta que é preciso iniciativas interseccionais, a exemplo de como foi o programa de Braços Abertos na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad. “Não é só um atendimento paliativo, pontual, de saúde, de oferecer internação para se recuperar a dependência, ou um bolsa de trabalho. A gente precisa de uma ação intersetorial coordenada, como já aconteceu naquele território e que não acontece mais”, explica.

Os movimentos também se preocupam quanto à formação da equipe de saúde que irá atender às pessoas na nova unidade e com o déficit de vagas entre a população do Glicério, que já aguardava pelo acolhimento na região. 

Jornal GGN/Reproduão
Ação da prefeitura passa por cima de pedido da Defensoria Pública de São Paulo, que solicitou na Justiça imediata suspensão do fechamento do Atende 2

Ação da Defensoria

O fechamento do serviço ainda passou por cima da ação civil pública ingressada nesta terça-feira (7) pela Defensoria Pública do Estado, que pedia a imediata suspensão da medida municipal até o fim da emergência decorrente da pandemia de covid-19, uma vez que o Atende 2 oferecia os serviços mínimos para atender às necessidades básicas da população em situação de rua. 

À repórter Cida de Oliveira, da RBA, o vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Leonardo Pinho, avaliou como uma “irresponsabilidade” do poder público o fechamento do serviço. 

As organizações da sociedade civil organizada também se queixam da ausência de equipes de saúde no local para levar informações de prevenção às pessoas, da atuação dos assistentes sociais sem equipamento de proteção individual (EPis) – como já denunciado pela RBA – e da ausência de abordagens criativas, como salas de uso, um espaço seguro e monitorado para o consumo de substâncias psicoativas. Hoje ainda, segundo Maria Angélica, o equipamento do Recomeço – programa do governo de João Doria que também oferece serviços para higiene – estava fechado. 

Com um fluxo constante de mais de 700 pessoas na cena de uso da Luz, que chega a dobrar no período da noite, a coordenadora ainda teme que muitas pessoas fiquem desassistidas. O É de Lei deve agora continuar monitorando a situação, além de fortalecer a campanha de arrecadação de itens de higiene pessoal e insumos para levar até o local. 

“O poder público não conseguiu estratégias. Muitas das pessoas que estão em uso mais intenso dificilmente vão procurar um serviço distante do território onde ela faz o consumo da substância. Então a gente consegue pensar que a cena de uso continua ali, só que continua sem nenhuma outra iniciativa do poder público para garantir a qualidade de vida dos indivíduos”, crítica.

Em nota, a prefeitura afirmou que “uma unidade de saúde vai funcionar dentro do equipamento com uma equipe de trabalho composta por assistentes técnicos e sociais, psicólogos, pedagogos, orientadores socioeducativos e agentes operacionais”. E que o equipamento irá “oferecer à população atendida acesso à alimentação (café, almoço, jantar), higiene pessoal, bagageiro, atendimento técnico e atividades socioeducativas”.

Procurado, o governo estadual não respondeu, até o fechamento desta nota, sobre o funcionamento das atividades do programa Recomeço na região da Luz.


Colaborou Cida de Oliveira