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Apesar do êxito, programa De Braços Abertos ainda é mal compreendido

Política de redução de danos tem sido mais eficiente do que experiências anteriores baseadas na repressão e internação forçada. Dos 416 beneficiários, 88% dizem ter diminuído o uso de crack

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Roberto Vivas: ‘Na verdade, todos nós temos talento, só é preciso ter a técnica e se expressar’

São Paulo – O silêncio impera no interior da sala onde pincéis, tintas, folhas em branco e materiais de desenho se espalham sobre longas mesas retangulares. As sete pessoas ali sentadas, de cabeças baixas, parecem plenamente absorvidas por suas tarefas individuais, como o rapaz que pinta seu quadro, em etapa já avançada; a senhora que copia figuras de um livro de arte; ou a jovem que esboça, a lápis, os traços realistas de um rosto feminino. Todos são alunos e alunas da oficina de desenho, pintura e escultura do professor Roberto Vivas, uma oficina de arte semelhante a qualquer outra, não fosse por um detalhe que lhe dá outra dimensão: são beneficiários do programa De Braços Abertos, a ação da prefeitura de São Paulo com dependentes de crack na região da Luz, centro de São Paulo.

“Na verdade, todos nós temos talento, só é preciso ter a técnica e se expressar”, explica Roberto Vivas, um italiano de 83 anos e há dois coordenando a oficina com os beneficiários do programa. Com mais de 30 anos de experiência em ensinar pessoas a desenhar, pintar e esculpir, Roberto destaca que a criatividade é a principal diferença entre seus alunos do De Braços Abertos, comparados com outros grupos com que já trabalhou. Para exemplificar sua ponderação, o professor italiano mostra quadros e desenhos feitos por eles, diferenciando o estilo de um e de outro.

A didática de Roberto parte da utilização de figuras geométricas para desenvolver a técnica de criar rostos, corpos e objetos. Segundo ele, a intenção é, no primeiro momento, ensinar a técnica para, depois, estimular a criatividade para que os alunos desenvolvam suas próprias obras. O professor monta apostilas que vão desde os passos iniciais para desenhar bocas, olhos e rostos, até livros com obras de grandes artistas.

Às primeiras perguntas da reportagem sobre a oficina ou o que gostam de fazer, a timidez é a resposta dos beneficiários do programa. Depois, de leve, soltam-se um pouco mais e um aponta para o outro, dizendo que aquele ali faz “coisas legais” e vice-versa. Um deles se levanta para ir buscar um quadro já finalizado. “É um bonsai, uma árvore japonesa”, diz, orgulhoso da obra, que tinha ainda a reprodução estilizada de um pagoda – torre com diversos níveis, em estilo arquitetônico asiático.

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Programa já atendeu em torno de 800 pessoas que moravam nas ruas e faziam uso abusivo de crack

Ao lado, uma jovem desenha a lápis as feições de um rosto feminino, os olhos já delineados, realistas. Ante a um elogio do desenho, ela mostra outros, estudos diversos de olhos e bocas em folhas separadas. Conta que frequentou a oficina por dois meses, parou por um problema de saúde e tinha retornado recentemente. Seus olhos eram grandes e brilhantes como os da mulher que começava a surgir na folha de papel à sua frente.

A cena da oficina do italiano Roberto Vivas se repete de modo semelhante em outras salas do prédio localizado na Alameda Nothmann, na Luz. No mesmo horário, há oficinas de costura e bordado, de artesanato, conserto de bicicletas, fabricação de objetos com pneus de caminhão, entre outras. Ao todo, o programa De Braços Abertos oferece hoje cerca de dez frentes de trabalho para os beneficiários atuarem. No começo do programa, há dois anos, eram duas atividades: varrição e jardinagem. As oficinas na sede da ONG Associação de Desenvolvimento Econômico e Social às Famílias (Adesaf) ocorrem de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 11h30. Naquela manhã de setembro, havia cerca de 120 integrantes do programa nas mais diversas oficinas – o De Braços Abertos conta atualmente com 416 beneficiários ativos.

Resultados práticos

Criado no início de 2014, o programa da Prefeitura de São Paulo já atendeu em torno de 800 pessoas que moravam nas ruas e faziam uso abusivo de crack. Inspirado em experiências bem-sucedidas nos Estados Unidos e Canadá, o pilar conceitual e prático do programa é a introdução de uma política de redução de danos na área conhecida como cracolândia, no centro da cidade.

Ao contrário de outras tentativas feitas por governos anteriores na região, com ações baseadas na repressão e na internação forçada, a política de redução de danos propõe tratar o usuário em meio aberto, inserindo-o na sociedade por meio da atenção integral dos usuários de substâncias psicoativas, oferecendo moradia, alimentação, trabalho e cuidado de saúde. Por não exigir dos beneficiários o fim do uso de drogas, o programa é incompreendido por parte da população e por quase todos os candidatos a prefeito de São Paulo, com exceção de Luiza Erundina (Psol-SP) e, obviamente, Fernando Haddad, os únicos que já garantiram a continuidade do programa.

As críticas, todavia, não encontram respaldo nos dados divulgados pela prefeitura de São Paulo no mês de agosto. Segundo a pesquisa, dos beneficiários que responderam o questionário, 88% afirmaram ter reduzido o uso de crack; 83% estão em tratamento de saúde; 53% recuperaram o contato familiar; 64% aderiram às frentes de trabalho; e 83% não possuíam documentação e tiraram após entrar no programa. “Isso tem tudo a ver com redução de danos”, afirma Benedito Mariano, secretário de Segurança Urbana da prefeitura e coordenador do programa De Braços Abertos.

“A maioria das pessoas que são contra o programa são por ignorância, no sentido de que não conhecem o programa, e outros por uma visão muito conservadora, de preconceito com essa população vulnerável e que acham que não deve haver alternativa nenhuma, a não ser aquela que o estado sempre deu que é a repressão. E se repressão resolvesse, nós não teríamos o fluxo ou a cracolândia. Em quase três décadas, a repressão foi a política do estado com essa população”, argumenta Mariano. Para ele, os dados mostram que a maioria dos beneficiários estão “praticamente autônomos” e “melhoraram extraordinariamente”, e que o programa precisa agora avançar na qualificação da hospedagem e das atividades de trabalho.

Continuidade ameaçada

O coordenador do De Braços Abertos não esconde a preocupação com o futuro do programa dependendo do resultado da eleição. “Se continuar a atual administração, o programa vai avançar. Se houver mudança, o posicionamento dos principais candidatos é muito preocupante com o que vai acontecer com a política de redução de danos”, disse, excetuando, em sua análise, a candidata Luiza Erundina. “Os outros já se manifestaram contrários ao programa e, eu acho, sem nem conhecer.”

Apesar do cenário incerto, Benedito Mariano afirma que vai continuar agindo sem pensar no processo eleitoral. “Estamos trabalhando com vidas que precisam de muito cuidado. Seja qual for o resultado, vamos deixar o programa bastante estruturado, com um universo grande de beneficiários. Acho que vai ser bastante temerário acabarem com o programa. Apesar das críticas em São Paulo, ele ganhou muita visibilidade e credibilidade internacional, já tendo sido apresentado como uma das políticas de redução de danos mais exitosas no Congresso Mundial sobre Drogas nas Nações Unidas.”

Mariano revela que gostaria que o programa fosse para a política de drogas o que os CEUs foram para a educação. Segundo ele, assim como nenhum candidato a prefeito de São Paulo é contra os CEUs, porque ele já virou uma política de Estado e não mais de um governo, o De Braços Abertos também deveria trilhar o mesmo percurso. A dificuldade, ele reconhece, é que a política de redução de danos ainda enfrenta muita resistência em setores da sociedade. “A cultura que nós temos sobre drogas é a da repressão ou da internação”, afirma.

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Conserto de bicicletas é mais uma das oficinas do programa: ao todo, são dez frentes de trabalho

Além de enfatizar os dados positivos que o programa vem adquirindo com as pessoas que dele participam, o coordenador ainda ressalta que o De Braços Abertos é mais econômico do que outras ações tradicionais. De acordo com Mariano, cada beneficiário do programa representa um investimento de R$ 2.800 por mês, enquanto um adolescente na Fundação Casa custa em torno de R$ 7.000 por mês, valor semelhante ao de um preso no sistema penitenciário ou de uma pessoa internada compulsoriamente.

No gabinete de Benedito Mariano, ao lado da sua mesa de trabalho, uma enorme televisão mostra, em tempo real, o que está acontecendo no “fluxo” – o trecho de rua que concentra a venda e uso de crack no centro da cidade. A câmera ao vivo alterna planos abertos e fechados, girando e abrangendo boa parte do que os especialistas definem como “cena de uso”. “Quero colocar uma televisão igual no gabinete do delegado do Denarc (Departamento de Investigações sobre Narcóticos)”, disse Mariano, lembrando que cabe à Polícia Civil e ao governo do estado coibir o tráfico na região. “Aí não vai ter desculpa.”

Olhando para a televisão, o coordenador do De Braços Abertos pondera que grande parte do fluxo é justamente formado por quem ainda não está no programa. “Os beneficiários já produziram coisas magníficas, desde quadros, pinturas, esculturas e artesanato. Conseguimos com a flexibilização das frentes de trabalho atrair mais usuários para a atividade laboral que, sem dúvida, contribui para a redução de danos e para a qualidade de vida e autoestima deles”, diz Benedito Mariano, enquanto a câmera vai girando e trazendo a realidade do fluxo para dentro do seu gabinete.

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