Rolando Lero

Em pronunciamento de fim de ano, presidente termina o ano como começou: mentindo

Em pronunciamento em cadeia, Jair Bolsonaro destilou mentiras sobre seu governo, e defendeu sua política de morte

Reprodução
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São Paulo – Em pronunciamento em cadeia nacional na noite deste 31 de dezembro, o presidente Jair Bolsonaro exibiu sua especialidade. Destilou mentiras sobre resultados de seu governo, desprezou a ciência e defendeu sua política de morte. Ignorou o drama das vítimas da crise econômica desgovernada. E também o drama das pessoas que têm parentes e amigos entre os 619 mil mortos e 22 milhões de adoecidos em decorrência do desprezo de Bolsonaro e seu governo pela vida humana. Nenhuma palavra de apreço ou solidariedade.

O pronunciamento de Bolsonaro mencionou “retomada” de obras de infraestrutura e celebrou a transposição das águas do Rio São Francisco. Citou a criação de “3 milhões de empregos” num país de 45 milhões de desempregados, desalentados, subocupados e informais. Além disso, o ocupante do cargo de presidente da República falou em distribuição de “bilhões” para estados e municípios enfrentarem a pandemia. Ao mesmo tempo, criticou os mesmos estados e municípios que adotaram medidas de isolamento social.

No pronunciamento de Bolsonaro, o auxílio emergencial aprovado a duras penas com esforços do Congresso foi obra do governo federal. Falando claramente aos seus seguidores, em fase de decrescimento, também lembrou da política de facilitação de acesso a armas.

Fora de “contexto”

Bolsonaro gravou seu pronunciamento há quase uma semana, antes de trocar o paletó do estúdio pelas roupas de banho e de farra nas praias do Sudeste e do Sul. Por isso, o presidente da República só pode lamentar “70 cidades” da Bahia afetadas pelas chuvas, enquanto na realidade 153 municípios fecham ao ano em estado de emergência. Nenhuma palavra às famílias dos 25 mortos, mais de 500 feridos e mais de 180 mil desalojados e desabrigados.

Ao final de pouco menos de seis minutos para comentar um ano tão difícil, talvez Bolsonaro não fizesse questão de saber que entre entre seu dia de parque de diversões e hoje, outras 72 choraram a perda de um ente querido para a covid-19 e outras 10 mil adoeceram.

Ao anunciar a gravação de seu pronunciamento defasado, Bolsonaro sugeriu que o “pessoal da esquerda” fizesse um panelaço para “comemorar três anos sem corrupção”. Desse modo, tentou se antecipar aos protestos, que realmente ocorreram em todo o país. Mas para pedir “Fora Bolsonaro”, e seu desprezo pela verdade e pela vida.

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Três anos “sem corrupção”

“Sou incorruptível e imbroxável”, disse Bolsonaro em julho, quando explodiu escândalo de corrupção envolvendo seu governo no caso da compra de vacinas da Covaxin. Apesar disso, o escândalo transitou não só por seu ministério como por seu gabinete, como revelou a CPI da Covid no Senado. No início deste mês, Bolsonaro mudou o discurso sobre a existência de corrupção em seu governo. “Não vou dizer que meu governo não tem corrupção, porque a gente não sabe”, disse, depois de questionado por um apoiador no cercadinho.

Assim, depois de prevaricar diante de propostas da fabricante Pfizer, o Planalto esteve diretamente envolvido na tentativa de aquisição superfaturada de 20 milhões de doses do imunizante indiano. Caso a CPI não tivesse impedido, o governo teria comprado as vacinas com 1.000% de superfaturamento. O esquema envolveu o seio do governo e nomes como o do líder de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros; o ex-ministro da Saúde general Eduardo Pazuello; o então secretário-executivo do Ministério da Saúde, também militar, Élcio Franco; entre outros nomes ligados a Bolsonaro.

O caso de corrupção correu enquanto Bolsonaro tocava um “gabinete paralelo” que atuava no lugar do Ministério da Saúde em relação à pandemia. Operadoras de Saúde, como a Prevent Senior, acusada de fraudar atestados de óbito para esconder a covid-19 e tentar impor o uso de cloroquina, e de ter feito experiências com medicamentos sem autorização dos pacientes, participavam do conluio.

Caso Jair Renan

Até o filho mais novo de Bolsonaro, Jair Renan, protagonizou parte da CPI da Covid. O filho 04 caiu na investigação após centenas de mensagens suas serem descobertas com Marconny Albernaz de Faria, lobista da Precisa Medicamentos.

Jair Renan, com 22 anos, abriu uma empresa milionária de eventos com ajuda do lobista. O negócio suspeito teve inauguração pomposa em camarote no Estádio Mané Garrinha, em Brasília, no auge da pandemia. Albernaz deu um dos depoimentos mais controversos da CPI, recheado de mentiras. Além de atuar em favor de Jair Renan, o lobista foi intermediário em contratos fraudulentos em valores que superam 1 bilhão de reais.

Interferência na PF e “rachadinhas”

Bolsonaro responde ao inquérito que investiga a participação do chefe do Executivo sobre interferência na Polícia Federal para proteger seus filhos e aliados. E, no fim das contas, a si mesmo, apesar de seus filhos serem os principais acusados de operar esquemas de contratar funcionários fantasmas em seus gabinetes. O escândalo que ficou conhecido como das “rachadinhas” está longe de ser esclarecido. Segundo as denúncias, ocorreu de maneira acintosa no gabinetes de Flávio Bolosnaro, o 01, quando era deputado estadual no Rio. E também de Carlos Bolsonaro, o 02, desde que virou vereador carioca no início do anos 2000.

Mas, pelas apurações, o buraco pode ser mais embaixo, ou mais em cima. Em entrevista ao programa Cai na Roda, no canal do GGN no YouTube, a jornalista Juliana dal Piva, do UOL, afirma: “Na medida em que eu fui avançando nessa investigação, começaram a surgir fontes que me falavam em off ‘vocês estão focados no Queiroz, ele é uma peça importante da história, mas está longe de ser o grande operador’ (…) Estou contanto no podcast [do UOL] o quanto que ele [Jair] coloca os filhos na política e como essa intenção de colocar os filhos na política tinha a ver com realmente criar um esquema de gabinetes. Ele é o grande organizador”, diz. Para resumir, o esquema é o seguinte: os gabinetes contratam funcionários fantasmas, este ficam com uma parte do salário e repassam outra parte para o esquema no gabinete.

Boiada

O presidente chegou a assumir que “protegeria sua família”. Inclusive, essa foi uma das mais escandalosas confissões reveladas de uma uma reunião ministerial de abril de 2020. Aquela em que o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles dizia que o governo deveria aproveitar as atenções voltadas para a pandemia para “passar a boiada” da destruição ambiental e do desmonte do Estado.

Ao longo de seu governo, delegados e funcionários da Polícia Federal foram depostos de seus cargos ao investigação a família Bolsonaro e apoiadores do Planalto. Mas tem muita apuração pela frente ainda, tanto no Ministério Público do Rio de Janeiro quanto no Supremo Tribunal Federal.

Micheque Bolsonaro

A primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu um total de R$ 72 mil reais entre 2011 e 2016 de Fabrício Queiroz, assessor de Flávio. Foram 27 cheques depositados no período. Desde que as denúncias foram divulgadas, em agosto de 2020, a pergunta “Por que Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle?” já foi repetida mais de 1 milhão de vezes nas redes sociais. Mas segue sem resposta, e sem menções em qualquer pronunciamento de Bolsonaro.

Fake News

Bolsonaro foi eleito em 2018 sustentado por um exército ilegal de divulgadores de notícias falsas. A Justiça, neste ano, chegou a condenar propagadores de fake news e financiadores de atos antidemocráticos, como Roberto Jefferson, Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, e Allan dos Santos. Este último, está foragido da Justiça e blindado por Bolsonaro em fuga para os EUA.

As investigações apontam para alguns empresários que estariam financiando o grupo criminoso, entre eles está o dono da rede de lojas Havan, Luciano Hang. Tem também o dono da Smart Fit, Edgard Gomes Corona. E ainda o ex-gestor do banco de investimentos norte-americano Lehman Brothers Otavio Fakhoury, financiador do site Crítica Nacional.

A chapa Bolsonaro-Mourão acabou não sendo cassada por uso ilegal de dinheiro empresarial para financiar o disparo de fake news nas eleições de 2018. Mas há indícios de que a prática seguiu em operação durante o governo, inclusive na propagação de tratamentos ineficazes contra a covid-19. É o chamado “gabinete do ódio“, também nunca explicado em nenhum pronunciamento do Bolsonaro.

Farra de militares

Levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que o Ministério da Defesa usou 535 mil reais destinados ao combate ao coronavírus para comprar itens como filé mignon e picanha para a alta cúpula do Exército. Destaque também para bebidas alcoólicas, bacalhau, salmão e camarão.

“Ressalte-se que, dos recursos destinados ao combate à pandemia Covid-19 utilizados indevidamente para aquisição de itens não essenciais (aproximadamente R$ 557 mil), 96% foram despendidos pelo Ministério da Defesa”, afirma a auditoria do TCU. Esse porcentual representa os R$ 535 mil.

Mas não é só isso, como se pode conferir nesta extensa reportagem do Brasil de Fato: “A mamata veste farda? Veja 10 casos de suspeitas de corrupção e crimes de militares desde 2019”.