Fascismo x democracia

Discurso do ódio incentivado pela mídia quase matou Cristina Kirchner, diz pesquisador argentino

Isso poderia acontecer porque uma rede de ideologia, mídia e tecnologias de comunicação preparava algo assim, afirma Ezequiel Ipar, da Universidade de San Martín

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Brasileiro apontou pistola a centímetros de líder argentina

São Paulo – A tentativa de assassinato sofrida pela vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, ontem (1º), em Buenos Aires, é parte de um contexto conhecido mundialmente. Particularmente, entre os próprios argentinos e no Brasil de Jair Bolsonaro: a disseminação do ódio, a intolerância política de extrema direita, a proliferação de mentiras e a tentativa de desconstrução midiática de lideranças populares na América do Sul. O brasileiro Fernando Andrés Sabag Montiel, autor do atentado, está preso.

Em artigo no site da revista Anfibia, publicação acadêmica e literária da Universidade Nacional de San Martín, Ezequiel Ipar, professor de Sociologia da Universidade de Buenos Aires, escreve que “o fato é comparável à violência política que culminou na invasão do Capitólio nos Estados Unidos, na radicalização de grupos de direita na Europa ou nas manifestações no Brasil sob Bolsonaro”.

“O ataque é explicado pela crescente intolerância e autoritarismo político”, escreve Ipar, pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet), do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva da Argentina. No artigo “Quem tentou matar Cristina? Foi o ódio”, ele aponta que o cenário de intolerância já indicava “o evento de violência política mais previsível e explicável da história recente”, como ele classifica o episódio.

Normalização da ideologia da violência

Para o professor, esse cenário é composto pelas incontáveis declarações midiáticas e judiciais contra as lideranças peronistas, o aprofundamento da perseguição política do sistema judiciário contra funcionários e ex-funcionários políticos, “a normalização na mídia de mensagens que promovem e justificam abertamente o desaparecimento de um partido político”, a estética da violência nas redes sociais e a lógica da intolerância política do “eles ou nós”.

Esses pronunciamentos e declarações públicas “justificam esse tipo de destruição massiva do adversário político”, afirma Ezequiel Ipar. Essa realidade contemporânea – muito semelhante à situação do período da Operação Lava Jato no Brasil – quase eliminou uma das principais lideranças da centro-esquerda da América Latina.

Nesta sexta-feira (2), a polícia e o governo argentino trabalham com a hipótese principal de que o agressor que tentou matar Cristina Kirchner, o brasileiro Fernando Andrés Sabag Montiel, agiu sozinho. O contexto é o do discurso ferozmente antiperonista, contra Cristina e os programas sociais tradicionalmente implementados pela centro-esquerda no país.

Brasileiro neonazista

O criminoso, preso desde ontem, tem pai chileno e mãe argentina, mas nasceu no Brasil, e supostamente reside na Argentina desde 1993, segundo informações do jornal Página12. Ainda não se sabe se a tentativa de assassinato fracassou por falha da arma, se Sabag errou no manuseio por nervosismo ou se a pistola, uma Bersa 380, é “velha e mal conservada”.

“A verdade é que o projétil que estava no carregador  – eram cinco balas – não entrou na câmara e por isso a tragédia não ocorreu”, informa o jornal. “O agressor deu três endereços, mas o que parece real é o de San Martín (cidade localizada na província de Buenos Aires), onde foram encontradas várias dezenas de balas.”

Sol negro

Segundo a imprensa argentina, Sabag Montiel seria motorista de aplicativo e foi detido em 2021 com uma enorme faca no porta-malas de seu carro, que estava sem placa. Ele tem tatuagens com símbolos nazistas e acessa perfis extremistas nas redes sociais. Tem no corpo uma tatuagem do “Sol Negro”, um símbolo que mistura ocultismo e nazismo que ressurgiu nos anos 90.

O Página|12 define o atentado contra a vida da ex-presidente como “uma pistola na cabeça da democracia”. O presidente Alberto Fernández afirmou em cadeia nacional que “foi um dos fatos mais graves desde que recuperamos a democracia”.

Lula, Dilma e Boric: solidariedade

Os ex-presidentes brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff se manifestaram sobre o episódio. “Toda a minha solidariedade à companheira @CFKArgentina, vítima de um fascista criminoso que não sabe respeitar divergências e a diversidade. A Cristina é uma mulher que merece o respeito de qualquer democrata no mundo. Graças a Deus ela escapou ilesa”, postou Lula.

“O atentado contra a vida de Cristina Kirchner – @CFKArgentina – por um brasileiro armado merece o repúdio do mundo inteiro. O ódio político e a violência de índole fascista, estimuladas por políticos extremistas, são uma ameaça à democracia na América Latina”, escreveu Dilma. “Minha solidariedade a @CFKArgentina e meu firme desejo de que o seu país, o Brasil e a América Latina superem esta situação e retomem o caminho da paz e da estabilidade”, acrescentou.

Para o presidente do Chile, Gabriel Boric, “a tentativa de assassinato da vice-presidente da Argentina, Cristina Fernández, merece o repúdio e a condenação de todo o continente”.

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