Saneamento em risco

Só o interesse do mercado explica a privatização da Sabesp, avaliam especialistas

Em audiência pública, sociedade civil, parlamentares e especialistas afirmam que a proposta do governador de São Paulo não traz nenhum benefício efetivo para a população e pode até atrasar prazos já previstos de universalização de serviços

Divulgação/Sabesp
Divulgação/Sabesp
“Não há nessa proposta do governo nenhum benefício efetivo para a população”, diz ex-presidente da ANA

São Paulo – Na contramão da proposta de privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, a Sabesp, enviada na semana passada à Assembleia Legislativa pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), a população de Hortolândia e da região metropolitana de Campinas, no interior do estado, saiu em defesa da permanência da empresa com sua função pública. O ato ocorreu durante audiência realizada ontem (26) na Câmara Municipal de Hortolândia, onde especialistas também contestaram os argumentos usados pelo governador para justificar a venda da estatal.

A maior companhia de saneamento do Brasil acaba de completar 50 anos. Seu atual modelo de gestão estabelece a administração pelo Executivo de 50,3% das ações. Tarcísio espera, no entanto, reduzir a participação para algo entre 15% a 30%. Um dos argumentos é que a desestatização reduziria o prazo de universalização dos serviços que, pelo Marco Legal do Saneamento, está previsto para 2033. O objetivo é garanti-la até 2029. Porém, de acordo com técnicos da área, dos 375 municípios atendidos hoje pela Sabesp, 310 já têm a universalização do serviço de água e esgoto.

Nos demais, a Sabesp também atua sob um prazo já estabelecido em contrato para atingir essa meta. Alguns deles inclusive antes dos próximos seis anos. É o caso de Hortolândia, cujo limite para universalização dos serviços de água e esgoto é 2025. “Aqui em Hortolândia assinar e aceitar essa condição significa correr o risco inclusive de perder essa universalização em 2025 para ir a 2029”, criticou o diretor de serviços urbanos do município, Vicente Andreu.

Extensão irregular de contratos

Ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), entre 2010 e 2018, ele destacou na audiência que “não há nessa proposta do governo nenhum benefício efetivo para a população”. Andreu também se opôs à proposta do governador que altera as condições dos contratos de concessão da Sabesp. A medida, que vem sendo questionada no Ministério Público estadual, pretende estender os contratos de serviços por 37 anos. “O que ele (Tarcísio) pretende é substituir os contratos existentes e prorrogar esses contratos até 2060. Os prefeitos que vierem a fazer esse tipo de movimento, de assinar essa adesão, (não precisarão) consultar as câmaras municipal”, observa.

“A posição, ainda em construção mas já com grande amadurecimento, é não prorrogar o contrato de Hortolândia. Porque não há nessa proposta de governo nenhum benefício efetivo para a população de Hortolândia se a gente vier a aceitar as condições dessa armadilha que está sendo montada em torno da privatização da Sabesp. O prefeito também já se manifestou contrário à privatização. (…) O crescimento do município, que é fruto de políticas públicas no município, tem como âncora, que também garantiu o desenvolvimento, a Sabesp, que é a Sabesp pública”, destacou o diretor.

Funcionário da companhia há 25 anos, o presidente do Sindicato de Água, Esgoto e Meio Ambiente de São Paulo (Sintaema), José Faggian, lembrou que Hortolândia é um exemplo de “como o setor privado não consegue tratar de um sistema da complexidade do saneamento de um município como o de Hortolândia”. Natural de Botucatu, Faggian lembrou que ingressou na Sabesp em 1988 pela cidade de Hortolândia, quando a empresa passou a atender a região. Na época com quase 200 mil habitantes, apenas 2% de seus esgotos eram coletados.

Privatização e suas consequências

“Aqui antes da Sabesp chegar tinham passado duas empresas privadas que não deram conta. A água aqui não se podia usar nem para lavar roupa. E a Sabesp por ser uma empresa pública pôde fazer um nível de investimento e trazer a qualidade do serviço que hoje temos no município”. Para o presidente do Sintaema, colocar o serviço sob a lógica privada priorizará o lucro em detrimento do atendimento da população.

“O problema de privatização da Sabesp não é apenas dos trabalhadores, mas um problema de 70% da população de São Paulo. Na medida que essa população, com certeza, será afetada de uma maneira ou de outra na qualidade e tarifa do serviço de saneamento a partir da privatização da Sabesp”, ressaltou Faggian. O deputado estadual Emídio de Souza (PT) também desmentiu o argumento de Tarcísio de que as tarifas serão reduzidas com a privatização.

A partir de dados do Sintaema, o parlamentar comparou as tarifas da Sabesp com os valores pagos no Rio de Janeiro e em Campo Grande, onde o abastecimento é privado. No caso da tarifa social, para pessoas vulneráveis que não têm como pagar pelo serviço, o valor é de R$ 22 por família pela Sabesp. No Rio, porém, aumenta para R$ 45, mais do que o dobro. Enquanto em Campo Grande chega a ser mais de três vezes o preço, custando R$ 61. O paulista, no geral, paga em média R$ 71 por 10 metros cúbicos de água hoje com a Sabesp pública. Já no Rio e na capital do Mato Grosso o valor sobe para R$ 111 e R$ 134, respectivamente.

Conluio com o mercado

A avaliação é que “não há explicação (para a privatização) que não seja o interesse do mercado com algum acordo feito antes da eleição para entregar o saneamento básico de São Paulo à empresa privada”, acusou Emídio.

“E por que eu acho que tem um combinado com o mercado? Quem é o presidente da Sabesp que o Tarcisio nomeou? Um cidadão chamado André Salcedo. Ele vem do mercado, trabalhou em várias empresas e a última que era diretor executivo é a empresa Iguá, que comprou a Cedae, a empresa de saneamento do Rio. Ou seja, ele botou a raposa para tomar conta do galinheiro. Ele veio com a missão de vender a Sabesp, e o que ele faz? Nomeia isso e se a privatização da Sabesp for em frente a Iguá será uma das principais empresas compradoras. Isso é maracutaia, picaretagem, não tem outro nome que se dá para esse tipo de situação”, afirmou o deputado estadual.

Vereadora de Limeira, Isabelly Carvalho (PT) alertou que a água privatizada tem “sabor de quem apenas vê o lucro em detrimento de um direito fundamental básico que é o acesso à água e ao saneamento básico”. De acordo com a parlamentar, seu município sente os efeitos do processo com a terceirização da distribuição da água por conta da operação local de uma empresa privada. O produto final tem “qualidade duvidosa, há lobby para que a empresa se perpetue na cidade por muitos e muitos anos e as tarifas são discrepantes”, lista.

Banheiro para quem?

A petista também cobrou a participação dos parlamentares da extrema direita da Assembleia, que ocupam suas pautas contra o que chamam de “banheiro unissex”, na Frente Parlamentar contra a Privatização da Sabesp. “A gente sabe que são esses mesmos deputados preocupados com banheiro unissex que não sabem dizer quantas famílias no estado de São Paulo não têm sequer acesso ao banheiro. Se querem discutir banheiro, vamos discutir as famílias que não têm acesso ao saneamento básico e que com certeza vão continuar sem acesso se essa privatização prosperar. É por isso que não têm interesse, porque não querem discutir a realidade de nosso país e do estado de São Paulo”, lamentou.

A audiência nesta quinta foi convocada pela deputada estadual Ana Perugini (PT), que advertiu que a função do governador não é privatizar a Sabesp. Por que essa preocupação tão assanhada de cuidar só dos municípios que tem a Sabesp? Nesta proposta enviada à Assembleia teríamos que ver o equilíbrio econômico. Quando falamos de saneamento estamos falando não só de água tratada, esgoto coletado, afastado e tratamento do esgoto. Falamos também de águas fluviais, de lixo, de resíduos sólidos. Mas não se trata disso e o nosso ordenamento jurídico fala que saneamento é tudo isso. E isso está sendo esquecido. Se tratará somente daquilo que é interesse do ponto de vista da lucratividade a toque de caixa?”, contestou a parlamentar.

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