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Questionado na Assembleia, governo paulista afirma que Sabesp não será ‘nova Enel’

Secretária do Meio Ambiente repetiu o discurso de que só com o setor privado é possível reduzir tarifas. Oposição e movimentos perguntam onde isso aconteceu

Fotos: Rodrigo Costa e Rodrigo Romeo/Ass. Leg. SP
Fotos: Rodrigo Costa e Rodrigo Romeo/Ass. Leg. SP
Galeria dividida pela PM na Assembleia Legislativa reuniu manifestantes a favor e contrários à privatização da 'joia da coroa dos paulistas'

São Paulo – A sombra da Enel pairou sobre a audiência pública, na Assembleia Legislativa paulista, sobre o projeto de privatização da Sabesp. Durante mais de cinco horas, ontem (16), parlamentares, especialistas e representantes de movimentos sociais se revezaram na tribuna para atacar e defender o Projeto de Lei 1.501, apresentado há um mês pelo governo estadual. Foram várias as referências ao recente caos no fornecimento de energia em São Paulo, com críticas à privatização e à Enel. A ponto de a secretária estadual de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, Natália Resende, se apressar em garantir a eficiência da “Sabesp do futuro”, expressão que ela usou: “Não vai acontecer o que aconteceu com a Enel”.

Entre os argumentos, a secretária falou em rede de distribuição mais “resiliente” e mais cuidado com os contratos. Repetiu, ao início e no final a audiência, que o Estado continuará presente e terá poder de veto em algumas situações. O objetivo é, por meio de oferta de ações, reduzir a participação estatal dos atuais 50,3% para algo em torno de 15% a 30%.

Natália Resende: ‘Não vai acontecer o que aconteceu com a Enel’

“A gente não quer essa opção (vender). A Sabesp vai continuar operadora”, disse Natália. Ela foi além e assegurou que só a mudança de controle proposta pelo governo será capaz de promover redução tarifária. Além de antecipar a meta de universalização dos serviços.

Só o privado resolve

Procuradora de origem e consultora jurídica no Ministério da Infraestrutura durante a gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos), atual governador, disse que entes públicos (Daee e Arsesp, a agência reguladora) continuarão responsáveis por gestão e tarifas. Assim, negou o termo “privatizar”, mas apresentou o setor privado como única via para a universalização, os investimentos e a eficiência.

Sentado quase ao lado da secretária, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado (Sintaema), José Faggian, disse que a discussão se trata de garantir um direito humano universal, o acesso à água. “O principal objetivo de ter uma empresa como a Sabesp é levar saúde para a população. Os números provam que a Sabesp é uma empresa eficiente, que presta um serviço de excelência.”

José Faggian: Sabesp é eficiente e presta serviço de excelência

Modelos predatórios

Há 25 anos na companhia, ele também questionou argumentos usados pela representante do governo estadual. “A permanência do Estado (com menos participação) não garante eficiência.” Em seguida, Faggian citou exemplos malsucedidos de privatização, como o modelo “predatório” inglês, que segundo ele resultou em aumento de dívidas, redução de investimentos e elevação das tarifas, beneficiando acionistas privados. “Não há agência reguladora que dê conta. Porque eles (novos proprietários) não cumprem os contratos. Não podemos permitir que a Sabesp vire uma nova Enel.”

Para reforçar esse receio, o engenheiro mecânico Amauri Pollachi exibiu diversas manchetes sobre episódios que atormentaram a população nos últimos dias, por falta de luz. Ele observou que, pela proposta do governo, questões como limites de voto e percentual de participação na Sabesp serão definidas somente depois, pelo Conselho Diretor do Programa Estadual de Desestatização (CDPED). Lembrou que os atuais contatos com municípios já estabelecem atendimento às metas de universalização. Para ele, o possível futuro modelo terá um poder estatal “frouxo”. E a venda será feita “sem parâmetros, sem metas”.

Reino de Papai Noel

Pesquisador e diretor da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp, Pollachi citou a chamada tarifa social (R$ 22,38) para afirmar que no Rio de Janeiro, onde o serviço foi privatizado, esse valor é 102% maior. Mesmo a tarifa comum (aqui de R$ 71,70) lá aumenta em 56%. “Onde estamos, no reino de Papai Noel? A Sabesp privada vai (em caso de crise hídrica) discutir prejuízo ou aplicar a famosa bandeira vermelha? Onde privatizou e reduziu tarifa?”, questionou.

Coordenador da frente parlamentar contrária à privatização, o deputado Emídio de Souza (PT) afirmou que as alegações do governo e seus apoiadores são conhecidas. “Quando a Eletropaulo foi vendida, o discurso foi exatamente o mesmo: aumento da eficiência e redução de tarifa. O que leva o governo de São Paulo a propor a privatização de uma empresa lucrativa e eficiente, a não ser o interesse do mercado?”

Jogo combinado com o mercado

“É um insulto à nossa inteligência achar que a empresa privada vai comprar empresa pública para deixar o público tomar conta”, acrescentou Emídio. “O governo Tarcísio está fazendo jogo combinado com o mercado para vender a joia da coroa dos paulistas.”

Por sua vez, o coordenador da frente parlamentar favorável ao projeto, Guto Zacarias (União), disse que as privatizações “deram certo no Brasil”. Em seguida, afirmou que no caso do Enel a privatização “foi mal feita”.

Questão de soberania

Deputado mais jovem da Casa (24 anos), ele é originário do MBL, movimento de direita que tomou parte das galerias do plenário Juscelino Kubitschek, o principal da Assembleia. A parte destinada ao público foi dividida pela PM entre contrários e favoráveis à privatização. Várias vezes o presidente da Casa, André do Prado (PL), ameaçou evacuar a galeria e suspender a audiência. O incidente mais sério aconteceu já na reta final do evento, às 18h, quando um desentendimento que quase resultou em briga interrompeu as atividades por 10 minutos. Do lado de fora, sindicatos e movimentos sociais protestavam contra o projeto.

“Ficar com a água sob controle público é questão de soberania”, declarou Simão Pedro (PT). “Este projeto é entreguista.” Para o deputado, o PL 1.501, que ele chamou de “mequetrefe”, deveria ter sido devolvido, por ser inconstitucional. Vários parlamentares questionaram o fato de o governo estadual ter enviado um projeto de lei em vez de uma proposta de emenda à Constituição (PEC), que segundo eles a situação exigiria – e que deverá resultar em uma “judicialização” do caso. No final, a secretária Natália Resende disse que o Executivo tem “muita segurança jurídica” em relação a esse ponto. Um PL facilita a vida do governo: exige menos votos (48) do que uma PEC (57).

“A água é nossa”

Ex-presidente da Sabesp (2007-2011), o economista Gesner Oliveira ressaltou os “avanços formidáveis” proporcionados pela companhia, mas acrescentou que a empresa tem limitações e, por isso, precisa de um “sócio privado”. Já o deputado Antonio Donato (PT) rebateu outro argumento governistas, de que o simples fato de Tarcísio ter sido eleito já significaria apoio da população à privatização. Exibiu cópia do programa de governo do candidato do Republicanos registrado na Justiça Eleitoral: “Não tem uma linha sobre privatização da Sabesp. O que ele prometeu fazer foi um estudo”. Estudo, por sinal, severamente questionado durante vários momentos da audiência pública.

Entre os representantes de movimentos sociais, Raimundo Bonfim (Central de Movimentos Populares) enfatizou que a questão é política e não técnica. “São Paulo está no escuro e, se privatizar a Sabesp, vai ficar sem água”, afirmou. O presidente da União Municipal de Estudantes Secundaristas de São Paulo (Umes-SP), Lucca Oyagawa, resgatou uma lema da campanha em defesa do petróleo: “A água é nossa”. Presidenta do Sindicato dos Metroviários, Camila Lisboa lembrou de recente plebiscito popular sobre privatizações (que refutou a venda de empresas públicas) e propôs a realização de um plebiscito oficial sobre o tema.

Água virou commodity

O ex-deputado Adriano Diogo resumiu a importância do assunto ao comparar água e petróleo ou gasolina em relação à economia mundial. “A água virou uma commodity. E Monica Seixas, líder do Psol na Assembleia, observou que o projeto não prepara a Sabesp para “fenômenos climáticos extremos” que o Brasil e o planeta já vivem.

O PL 1.501 deverá passar por três comissões na Casa: Constituição, Justiça e Redação, Infraestrutura e Finanças. Recebeu quase 180 emendas. O relator é o experiente Barros Munhoz (PSDB), ex-presidente da própria Assembleia. Ele já fez declarações favoráveis ao projeto.

Com lucro líquido de R$ 3,121 bilhões em 2022 (crescimento de 35,4% sobre o ano anterior), a Sabesp tem 28,1 milhões de pessoas atendidas em 375 municípios. A coleta de esgoto atinge 24,8 milhões. A empresa tem aproximadamente 12 mil funcionários. Eram 12.299 no final do ano passado (ante 12.512 em 2021), mas houve um recente programa de demissões voluntárias, que irá reduzir esse número.