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Chomsky: negociações de paz não irão adiante se Estados Unidos não aderirem

Sobre a possibilidade de muitos terem interesse na continuidade da guerra apostando na queda de Putin, o filósofo disse que é algo “criminoso e tolo”. “Criminoso porque perpetua uma guerra cruel e fulmina a esperança de acabar com seus horrores; tolo porque é bem provável que se Putin for derrubado, alguém ainda pior assuma o poder”

Mauro Calove
Mauro Calove
Para o filósofo, uma das maiores consequências imediatas da guerra na Ucrânia é o fortalecimento do modelo proposto pela Otan, induzindo um atrelamento dos países da União Europeia aos desígnios dos Estados Unidos

São Paulo – A despeito de poucos progressos até agora, as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia prosseguem. De acordo com o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, não é possível “fazer quaisquer previsões de momento” e, segundo ele, é preferível “esperar por resultados tangíveis” antes de se “informar a população de ambos os países”.

“O trabalho entre as duas delegações continua por videoconferência, é um trabalho complexo, e o fato de continuar já é positivo”, disse ainda em coletiva de imprensa concedida nesta terça-feira (15).

Para o filósofo e linguista estadunidense Noam Chomsky, é necessário “encontrar uma maneira de acabar com esta guerra antes que ela aumente, possivelmente para a devastação total da Ucrânia e uma catástrofe inimaginável. A única maneira é um acordo negociado”.

Chomsky, em entrevista ao site Truthout, disse acreditar, contudo, que os Estados Unidos precisam empreender esforços reais para frear o conflito.

“As propostas de Zelensky estreitam consideravelmente a distância em relação às demandas de Putin e oferecem uma oportunidade para levar adiante as iniciativas diplomáticas que foram empreendidas pela França e pela Alemanha, com o limitado apoio chinês”, explica. “As negociações podem ter sucesso ou podem falhar. A única maneira de descobrir é tentar. É claro que as negociações não chegarão a lugar nenhum se os EUA persistirem em sua inflexível recusa em aderir, apoiados pelo comissariado virtualmente unido, e se a imprensa continuar a insistir que o público permaneça no escuro, recusando-se até mesmo a relatar as propostas de Zelensky.”

Senhores da guerra

Ao ser perguntado sobre a razão por trás de muitos nos Estados Unidos e no Reino Unido instarem a Ucrânia e mesmo cidadãos comuns do país a continuarem lutando, Chomsky aponta que pode ser uma crença de que, com o prolongamento da guerra, Vladimir Putin poderia ser derrubado, em um cenário agravado também pelas sanções econômicas.

“Talvez seja baseado na esperança de mudança de regime. Se assim for, é ao mesmo tempo criminoso e tolo. Criminoso porque perpetua uma guerra cruel e fulmina a esperança de acabar com seus horrores; tolo porque é bem provável que se Putin for derrubado, alguém ainda pior assuma o poder”, pontua.

Para o filósofo, uma das maiores consequências imediatas da guerra na Ucrânia é o fortalecimento do modelo proposto pela Otan, induzindo um atrelamento dos países da União Europeia aos desígnios dos Estados Unidos, “reduzindo mais uma vez os esforços repetidos para se criar um sistema europeu independente” do país da América do Norte.

“Essa tem sido uma questão fundamental desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Por enquanto, Putin resolveu a questão ao proporcionar a Washington seu desejo mais profundo: uma Europa tão subserviente que uma universidade italiana tentou proibir uma série de palestras sobre Dostoiévski, para citar apenas um dos muitos exemplos flagrantes de como os europeus estão se fazendo de bobos.”

A guerra na Ucrânia e a crise climática

Chomsky também atentou na entrevista para os efeitos ambientais do conflito em um planeta que já vive às voltas com uma aguda crise climática. “O golpe não é apenas severo, mas também pode ser fatal para a vida humana organizada na Terra, e para as inúmeras outras espécies que estão em processo de extinção”, aponta o filósofo.

“Em meio à crise da Ucrânia, o IPCC divulgou seu relatório de 2022, de longe o alerta mais terrível que já produziu. O relatório deixou muito claro que devemos tomar medidas firmes agora, sem demora, para reduzir o uso de combustíveis fósseis e avançar em direção à energia renovável”, afirma.

O filósofo diz ainda que o atual cenário facilita o retorno dos republicanos ao centro do poder, “para que possa retomar a dedicação da administração Trump em destruir tudo o mais rápido e eficazmente possível”. Mesmo diante de um quadro nebuloso, há uma fresta de esperança. “O jogo não acabou. Ainda há tempo para correção radical do curso. Os meios são compreendidos. Se a vontade está lá, é possível evitar a catástrofe e passar para um mundo muito melhor. A invasão da Ucrânia foi, de fato, um duro golpe para essas perspectivas. Se constitui um golpe terminal ou não é para nós decidirmos.”