Alerta

Russofobia: a história se repete em momentos de crise

Boicotes culturais, agressões e discriminações a cidadãos comuns. Como em outros períodos históricos, o preconceito contra determinada nacionalidade aflora punindo pessoas que não são responsáveis por atos de Estado

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A Filarmônica de Cardiff substituiu o programa de seu próximo concerto retirando a peça '1812 Overture', de Tchaikovsky, chamando-a de "inapropriado desta vez"

São Paulo – Em diversas partes do mundo têm sido registradas cenas que remetem a um sentimento anti Rússia que vai muito além da rejeição a autoridades governamentais, atingindo os cidadãos comuns, imigrantes, ícones culturais e a própria história russa. As ações vão desde boicotes a estabelecimentos que estejam associados ao país até a exclusão de artistas de espetáculos e eventos, passando por constrangimentos de todo tipo.

Matéria do site EuroNews publicada nesta quarta-feira (9) relata atos de vandalismo contra igrejas ortodoxas e o centro cultural russo de Paris. Em Dublin, capital da Irlanda, um homem avançou com um caminhão contra os portões da embaixada russa na segunda-feira (7), sem deixar feridos.

Na semana passada, a rede de hotéis Pytloun, na República Tcheca, anunciou que deixaria de hospedar pessoas da Rússia e da Bielorrússia devido à guerra na Ucrânia. No mesmo país, um professor da Universidade de Economia de Praga chegou a postar em rede social uma convocação para um boicote a estudantes russos em escolas tchecas. Depois, Martin Dlouhý apagou a publicação afirmando que havia “ficado com raiva” com as ações da Rússia.

Em Bruxelas, na Bélgica, universitários russos “não podem mais solicitar apoio financeiro” para seus estudos após o ministro da Educação flamengo Ben Weyts ter excluído o país do programa de bolsas de estudos Mastermind, a pedido de seu colega ucraniano Serhiy Shkarlet, nesta semana.

No mundo das artes, o preconceito também flui livremente. A Filarmônica de Cardiff, do País de Gales, substituiu o programa de seu próximo concerto retirando a peça ‘1812 Overture’, de Tchaikovsky, chamando-a de “inapropriada desta vez”. Um pianista russo de 20 anos, Alexander Malofeev, que estava pronto para se apresentar com a Orquestra Sinfônica de Montreal, teve sua apresentação cancelada, mesmo se opondo à guerra na Ucrânia. 

Na segunda-feira (7), o músico afirmou em uma rede social que estava triste com o “ódio indo em todas as direções, na Rússia e em todo o mundo”, e que “ainda acredita que a cultura e a música russa especificamente não devem ser manchadas pela tragédia em curso”. Ele também afirmou que tinha sido instado a fazer mais declarações anti-guerra, mas estava “muito desconfortável” e preocupado em relação a como isso poderia afetar sua família que vive na Rússia.

A russofobia generalizada

Em artigo publicado na Current Affairs, o editor da publicação e ex-colunista político do Guardian Nathan J. Robinson pontua que “julgar alguém pelo país em que nasceu ao invés da posição que assume na guerra é intolerância nacionalista”. “Prejudicar a carreira de um pianista de 20 anos, embora ele tenha condenado a guerra, é sem sentido. Temos que ter cuidado com atos de culpa e punição coletivas, porque muitas vezes são cruéis e injustificados”, diz.

“Há uma tese por trás da punição aos russos comuns pelos crimes de Vladimir Putin, que é que ela vai ‘pressionar’ para acabar com a guerra. Mas enquanto algumas ações (como o congelamento de ativos do banco central russo) visam diretamente o Estado russo, outras respostas têm uma conexão muito menos óbvia com o objetivo, e podem parecer operar na suposição questionável de que estigmatizar ser russo seja uma maneira eficaz de alterar as decisões de Vladimir Putin”, adverte.

Ao lembrar de casos de normalização da russofobia, como o do ícone do hóquei da NHL estadunidense Dominik Hasek, que pediu à liga suspensão imediata dos jogadores russos e que os mesmos doassem todos os seus ganhos desde o início da guerra a programas de ajuda humanitária, a jornalista radicada na República Tcheca Bradley Blankenship, no Global Times, destaca que “há certamente outros países que estão vendo as mesmas coisas”.

“Tudo isso vai muito além das medidas punitivas contra o Estado russo e é uma guerra generalizada contra o povo russo”, diz. “Mas esse tipo de comportamento é perigoso. É perigoso para pessoas normais que vivem nesses países e não têm nada a ver com as decisões tomadas pelo governo russo. Também é perigoso porque leva à amplificação de ações radicais. Esse comportamento corrói os direitos civis e a democracia nesses países de maneiras óbvias, criando claras contradições através do excepcionalismo.”

Vodcas russas no chão

A editora do Boston Globe Renée Graham lista em artigo alguns casos em que cidadãos da Rússia foram alvo de ofensas e manifestações xenofóbicas nos Estados Unidos. Daniel Mataiev, gerente do Café São Petersburgo na cidade de Newton, em Boston, disse que o estabelecimento recebeu ligações em que foram ditas “coisas horríveis” sobre os russos. O restaurante tem também ucranianos entre seus funcionários. A Escola Russa de Matemática, um programa pós-escola que opera em 15 localidades da Grande Boston, divulgou uma declaração em seu site para dizer “que, independentemente de seu país de origem, ninguém é responsável por esta guerra além de Putin e seu regime”.

O Russian Tea Room (em tradução livre, “Sala de Chá Russa”), icônico restaurante novaiorquino que não é de propriedade de russos, apesar do nome, vem sofrendo queda acentuada em sua clientela desde o início da ofensiva de Putin na Ucrânia. Estadunidenses derrubaram vodcas russas nas ruas em “protesto” em diversas cidades do país.

Protesto diante da embaixada russa em Nova York com garrafas de vodcas sendo esvaziadas na rua

No meio político também há manifestações nada construtivas. O deputado democrata da Califórnia Eric Swalwell defendeu na semana passada, na CNN, que se discutisse a extradição de estudantes da Rússia. “Francamente, eu acho… expulsar todos os estudantes russos dos Estados Unidos”, disse , deveria “estar na mesa”. O também deputado democrata Ruben Gallego, do Arizona, o apoiou, tuitando: “Esses estudantes russos são filhos e filhas dos russos mais ricos. Uma mensagem forte pode ser enviada enviando-os para casa.” Cerca de 5 mil estudantes vindos da Rússia estudavam em universidades estadunidenses em 2021, de acordo com o Instituto de Educação Internacional.

Ondas de preconceito recorrentes

Renné aponta que “ser russo não é sinônimo de apoiar um presidente autocrático”. “Na história americana, pessoas inocentes muitas vezes se tornaram bodes expiatórios para as decisões imorais dos tiranos. Com a guerra de Putin contra a Ucrânia, não finja que não pode acontecer novamente”, adverte, destacando outros episódios em que diversas nacionalidades foram alvo de discriminação em diversos países, em especial nos Estados Unidos, como os chineses, durante a pandemia de covid-19, ou mesmo a islamofobia estimulada após os ataques terroristas do 11 de Setembro.

“O sentimento antimuçulmano e a violência aumentaram após os ataques de 11 de setembro de 2001. Manifestantes islamofóbicos frustraram os planos de construção de mesquitas e centros comunitários, enquanto casas de culto muçulmanas foram desfiguradas e vandalizadas”, lembra. “Desde o início da pandemia de covid-19, os crimes de ódio contra asiáticos, asiático-americanos e habitantes das ilhas do Pacífico aumentaram. Depois que a China se tornou a primeira nação a identificar o vírus, Chinatowns, inclusive em Boston, sofreram o peso da raiva e do medo irracionais que fizeram com que seus negócios lutassem semanas antes de o país entrar em confinamento.”

Os números demonstram a realidade que Renné aponta. Entre março de 2020 e dezembro de 2021, um total de 10.905 incidentes de ódio contra pessoas asiáticas americanas e das Ilhas do Pacífico (AAPI) foram relatados à entidade Stop AAPI Hate. As violações dos direitos civis como, por exemplo, discriminação no local de trabalho, recusa de serviço, ser barrado em transporte e discriminação relacionada à moradia, representaram 11,5% do total de incidentes.

“Sem dúvida, as repercussões sempre são mais profundas para as comunidades não brancas”, lembra a jornalista. “Meses após o bombardeio de Pearl Harbor pelo Japão em 1941, mais de 120 mil nipo-americanos foram removidos à força de suas casas e enviados para campos de internação onde permaneceram durante a guerra. Nada mais do que sua etnia os tornava suspeitos. Algo que expôs de forma singular o que a cidadania americana realmente significa para quem não é branco.”


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