Tragédia humanitária

Faltam água, remédios e há risco de covid, diz professora que vive na Faixa de Gaza

Nova onda de ataques aéreos de Israel marca o 11º do conflito, que já deixou 230 palestinos mortos. Direto da região, professora de matemática descreve o dia a dia dos ataques. “Estou falando da minha casa, mas a qualquer momento ela pode ser bombardeada”, lamenta

Agência Wafa
Agência Wafa
"As provas de vestibulares vão começar dia 17 de junho. Um jovem ligou para mim contando que perdeu tudo, todos os livros. Como ele vai estudar?", lamenta a professora na Faixa de Gaza

São Paulo – Apesar dos pedidos internacionais de cessar-fogo, o estado de Israel voltou a promover ataques aéreos na Faixa de Gaza nesta quinta-feira (20). De acordo com o ministério da Saúde da Palestina, já são 230 mortos pelos bombardeios, incluindo 65 crianças, 39 mulheres e 17 idosos, e outros mais de 1,7 mil feridos, em 11 dias de conflito, que teve início no último dia 10 de maio. 

Do lado israelense, as autoridades confirmam 12 óbitos, entre eles, o de uma criança. Ontem (19), veículos da imprensa internacional começaram a divulgar a possibilidade de trégua em até 24 horas, que teria sido confirmada por fontes militares. Autoridades egípcias estariam fazendo progressos nas negociações com a liderança do Hamas, grupo islâmico que governa o território da Faixa de Gaza. E, em paralelo, militares israelenses teriam confessado que estavam perto do “cumprimento de seus objetivos”. As afirmações coincidem com telefonema do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ao primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, nesta quarta, que cobrou uma “significativa redução de ataques em direção a um cessar-fogo”.  

A onda de hostilidade, no entanto, permanece. De acordo com informações do veículo independente Middle East Eye, o Conselho de Direitos Humanos da ONU convocou uma sessão especial para tratar da “grave situação dos direitos humanos no Território Palestino Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental”. A situação no país já ganha status de crise humanitária, como confirma a professora de matemática Huda Al Assar, diretamente de Gaza, em entrevista à jornalista Marilu Cabañas, do Jornal Brasil Atual

Crise humanitária

A entrevista de Huda Al Assar estava agendada para ontem, mas não pôde ser realizada porque a professora passou mal. Segundo ela, bombas de gás lacrimogêneo foram jogadas pelo exército israelense entre as casas de seu bairro, em uma cidade da Faixa de Gaza, e ela acabou tendo contato com a substância. “Eu tenho asma também, então quando inalei o gás não aguentei e passei mal, minha pressão aumentou”, explicou. Direto do local, Huda Al Assar, que é também mãe de quatro filhos, descreveu um cenário de violações perpetradas por Israel contra a população palestina, enquanto ao fundo eram ouvidas novas bombas. 

“Nós, na Faixa de Gaza, estamos vivendo uma tragédia, uma covardia muito grande. Faixa de Gaza é um território pequeno, que não ultrapassa de 365 quilômetros quadrados. Moram aqui quase 2 milhões de pessoas. Mas, infelizmente, há 16 anos, ela está sendo cercada, sitiada, ninguém pode entrar ou sair. A gente tem uma vida que só Deus nos ajuda e o amor pela nossa terra é o que está nos deixando viver”, afirma. 

“O Estado de Israel está aparecendo para o mundo inteiro como vítima, mas ele não é vítima nenhuma. Nós que somos vítimas. Sou professora, tenho alunos que passam nos vestibulares, ganham bolsas de estudo, e não podem ir, porque ele (Israel) não permite. (…) Eu preciso fazer uma operação, eles podem não deixar. Às vezes se morre na espera. A nossa água cada dia está pior. Vai chegar um dia que a nossa água não vai servir para uso humano. Temos duas fronteiras, uma para Israel e entre a gente e o Egito. Se uma das fronteiras abrir, nós podemos sair. Se as duas não abrem, não podemos. Abrem quando eles querem, para certas pessoas, com muitas dificuldades. As escolas estão fechadas, o desemprego está muito grande (…) e agora estamos vivendo há 11 dias esse conflito”, elenca a palestina. 

Quem são os terroristas?

Durante a entrevista, Huda Al Assar mostrou fotos de casas bombardeadas e das vítimas dos ataques aéreos. Em uma delas, ela conta que estavam no local uma família, com uma criança que aparentava ter menos de cinco anos, mas que não foi avisada que o edifício onde eles moravam ia ser destruído. “O que essa criança fez para perder a vida de uma maneira horrível?”, questiona. “Israel diz que está matando terroristas, essa criança é terrorista? O que significa terrorismo para o estado de Israel? Eles são terroristas que matam as crianças, as pessoas sem armas e que não têm para onde ir. Tem hoje quase 5 mil pessoas que perderam suas casas, estão todos nas escolas, sem luz, sem água”, detalha. 

Segundo a professora, o fornecimento de energia, que nunca foi integral e variava de oito a seis horas por dia com luz, tem desde o início do conflito no máximo duas horas diárias de fornecimento. Os ataques forçaram ainda o deslocamento de pelo menos 52 mil palestinos, segundo as Nações Unidas. As cinco mil pessoas que perderam suas casas, mencionadas por Huda Al Assar, tiveram de procurar abrigo nas escolas da região, que abriram suas portas para acolher os novos sem-teto. Por conta da pandemia de covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou estar preocupada com uma possível aglomeração nos locais. A avaliação é que concentrar famílias nas escolas, nesse momento, é um fator preocupante para a disseminação da doença. 

Destruição

A ONU também calcula que 132 prédios foram destruídos e outros 316 danificados, incluindo seis hospitais e nove centros de saúde. Já há inclusive falta de remédios e leitos nas unidades de saúde que se mantêm. Desde 2006 vivendo na Faixa de Gaza, a professora de matemática já passou por guerras em 2008, 2012 e 2014, considerada até então a mais hostil, com mais de 2,2 mil palestinos mortos por Israel. Esta quarta guerra, no entanto, está sendo a pior, de acordo com ela. 

“Apesar de ter morrido até agora menos do que em outras guerras, ela está sendo mais difícil, porque a primeira coisa que Israel fez foi acabar com os maiores edifícios que tem na Faixa de Gaza. Eram prédios com quase 50 famílias. Imagina, 50 famílias saindo, o prédio inteiro sendo derrubado enquanto você olha sua casa, que só Deus sabe como você construiu, como colocou seus móveis. Quantas lembranças não têm e que vão embora? As provas de vestibulares vão começar dia 17 de junho; um jovem ligou para mim contando que perdeu tudo, todos os livros. Como ele vai estudar?”, lamenta a professora. 

“Você não sabe quem é o próximo. Você pode ser o próximo. Estou falando da minha casa, mas a qualquer momento ela pode ser bombardeada, tem pessoas que são avisadas, outras não e morrem embaixo de suas casas. Eles bombardearam ruas próximas aos hospitais. Ontem passei mal e não tinha como ir para um hospital porque não tem como andar de carro até lá. Precisa ir a pé porque as ruas estão quebradas de uma maneira terrível. A segunda coisa é que dentro acabou as condições, eles estão recebendo para emergência. As fronteiras estão fechadas, ontem teve pedido para permitir a entrada de materiais para hospitais, e o estado de Israel infelizmente não permitiu”, acrescenta. 

A força da luta

Antes de ir morar na Palestina, em 2006, Huda Al Assar já havia deixado o território para viver nos Emirados Árabes, quando começou a Guerra do Golfo, no começo de 1991. Com os filhos, ainda pequenos, ela foi forçada a deixar o país e, para se abrigar, pediu refúgio ao Brasil. Por aqui, a professora conta ter vivido uma das melhores épocas de sua vida, foram 15 anos de refúgio, até que ela decidiu rever a família na Faixa de Gaza, depois de 21 anos de distância e por lá decidiu permanecer.

As raízes, o pertencimento, a sua cultura que reencontrou é o que hoje também alimenta sua força para permanecer na luta pela Palestina livre em meio ao horror de tantas guerras, como explica. “Eu vi uma mãe, que perdeu três filhos, falando que a perda não era nada pela nossa terra. ‘Eu e meus filhos somos poucos por Jerusalém’. Isso é o pensamento de todo palestino. Eu peço a Deus para não perder nenhuma das minhas três filhas e um menino, porque não sei se vou aguentar uma coisa dessa. Mas repito o que ela falou, eu e meus filhos somos pouco por Jerusalém, que vale muito mais que isso”, ressalta à Rádio Brasil Atual

Jerusalém está no centro de um conflito histórico, em que os dois lados, Israel e Palestina, reivindicam o local como sua capital. Em 1948, na fundação do estado de Israel, o território foi dividido em duas partes pelo plano de partilha da ONU, que determinou o lado oriental como palestino e o ocidental como israelense. Apesar do acordo, referendado pela comunidade internacional, Israel afronta o acordo, avança sob o território alheio com invasões ilegais e com aparato da força. Apenas nesta semana, a Anistia Internacional reconheceu que os bombardeios israelenses sobre prédios da Palestina podem configurar crimes de guerra. 

Confira a entrevista

Redação: Clara Assunção – Edição: Helder Lima