Palestina cercada

‘Israel rouba casas, mata crianças e impede palestinos de ter vida normal. Esse cotidiano ninguém mostra’

Moradora na Cisjordânia faz relato sobre ataques que já deixaram 213 mortos e 1.500 mil feridos. Bloqueio em Gaza ameaça hospitais e chegada de oxigênio a palestinos com covid-19

Agência Wafa
Agência Wafa
"Israel rouba as nossas casas, invade a privacidade, mata crianças, impede nós, palestinos, de ter uma vida normal e o direito de ir e vir dentro do nosso país, e nós que somos os criminosos?", questiona historiadora

São Paulo – “A gente ouve que Israel está atacando para se defender. Quer dizer, Israel rouba as nossas casas, invade a privacidade, mata crianças, prende pais, irmãos, esposos, impede nós, palestinos, de ter uma vida normal e o direito de ir e vir dentro do nosso país, e nós que somos os criminosos? É difícil.” A historiadora brasileira Ruayda Rabah, que vive na Palestina, na cidade Kobar, na Cisjordânia, é uma das vozes da comunidade árabe que contesta versões veiculadas pela imprensa comercial no Brasil sobre o conflito, retomado por Israel desde o dia 10 de maio, contra territórios palestinos

Integrante da Secretaria de Mulheres da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal) e ex-presidenta do Conselho de Cidadãos Brasileiros na Palestina, ela se revolta com a forma como o povo palestino é retratado internacionalmente enquanto tenta se proteger dos bombardeios. Até esta terça-feira (18), 213 pessoas foram mortas, sendo 61 crianças, 36 mulheres e 16 idosos, segundo o Ministério da Saúde palestino. Do outro lado, em Israel, 12 mortes foram registradas pelas autoridades locais. 

Ruayda Rabah concedeu, nesta terça, entrevista à jornalista Marilu Cabañas, do Jornal Brasil Atual. Com apoio da equipe técnica, conseguiu registrar seu relato sobre os ataques de Israel a Gaza e à Cisjordânia. O conflito histórico ganhou novo capítulo há uma semana após o protesto de famílias palestinas contra o despejo em um bairro de Jerusalém Oriental – outro território descontínuo que forma a Palestina, reivindicado por colonos judeus. Com a mão armada do Estado de Israel, a violência se espalhou desde então sobre as demais regiões palestinas. Enquanto dava a entrevista, sirenes eram ouvidas ao fundo em diversos momentos. Sinal dos ataques de Israel aos palestinos.

Cercados e violados

Na Cisjordânia, por exemplo, é grande a quantidade de drones sobrevoando o espaço aéreo. Isso acaba interferindo na internet, e por isso os problemas de comunicação driblados pela equipe técnica para viabilizar a entrevista à Rádio Brasil Atual. Apesar das dificuldades, a historiadora contou como é sentir na pele todo o horror e pânico da iminência de um ataque aéreo. Ruayda Rabah atua também na divulgação turística alternativa para aproximar outros povos da cultura palestina e é integrante do Elo Europeu Para o Ensino de Língua Portuguesa no território, onde residem mais de cinco mil brasileiros-palestinos.  

“Gaza é o local que mais sofre. Desde 2003 eles estão enclausurados num espaço mínimo de território para mais de 2 milhões de pessoas. São atacados com frequência. Não se tem água e nem luz. É proibido que se entre com mantimentos ou materiais de construção para repor aquilo tudo que é destruído por Israel em seus contínuos ataques. Também não se pode sair da fronteira”, descreve. 

“Mas a Cisjordânia também sofre com isso tudo. Nós não temos direito de sair por aeroportos dentro da Palestina. Mesmo porque o nosso único aeroporto que existia na Faixa de Gaza foi destruído. Temos de atravessar a fronteira da Jordânia para nos dirigirmos até o aeroporto da Jordânia. Para atravessar, temos de passar pela aduaneira israelense e a jordaniana, apesar de estar em um território palestino. Geralmente somos muito humilhados. Algumas vezes não nos passam, outras vezes sim. Também temos ataques contínuos às nossas cidades e vilarejos. Colonos que vivem em assentamentos ilegais ao redor dessas cidades e vilarejos nos atacam, queimam nossas oliveiras, acabam com as nossas plantações e isso tudo com a proteção do exército israelense”, complementa. 

Cotidiano que ninguém mostra

Ruayda Rabah conta ainda que, em todas as cidades da Cisjordânia ocupada há checkpoints militares que fazem o controle da entrada nos territórios, limitando inclusive o horário de saída e chegada. 

“Isso sem contar com a violência que Israel comete pelo seu exército quando eles invadem os vilarejos ou cidades de madrugada, momento em que as pessoas estão dormindo, para prender jovens que por muitas vezes não fizeram nada. Ou porque escreveram algo no Facebook, que não foi de agrado do Estado de Israel, ou por terem se defendido em um confronto. O exército israelense quebra toda a casa, rouba dinheiro, ouro, tudo o que se encontra. A mãe é geralmente humilhada para que os homens da casa reajam e sejam presos”, relata. “Outra violência que acontece é a invasão de universidades, escolas primárias e secundárias. Já presenciamos o exército israelense arrastando uma criança de 10 anos para ser presa. Esse é o cotidiano que ninguém mostra e fala”, acrescenta a historiadora. 

Territorialmente e politicamente divididos, Gaza é governada pelo grupo islâmico Hamas, já a Cisjordânia segue sob o comando do partido laico Fatah. Na Faixa de Gaza, contudo, os palestinos vêm se organizando por meio de grupos armados do Hamas, mas que não possuem aparato militar. A maioria de seus foguetes, usados contra Israel, são caseiros. Do outro lado, porém, o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu utiliza as chamadas forças de defesa para comandar as represálias, com lançamento de mísseis à região palestina. A fronteira também é controlada por batalhões e carros de combate. 

Mortes, hospitais e a covid-19 

Essa já é a maior escalada militar de Israel desde 2014, quando mais de 2,2 mil palestinos foram mortos na Faixa de Gaza. A situação é agravada pela pandemia de covid-19. Na segunda (17), os ataques aéreos israelenses destruíram o principal centro de testes do novo coronavírus em Gaza. O Ministério de Saúde palestino também informou que sua sede foi atacada, assim como uma clínica de saúde e a sede da Cruz Vermelha. As autoridades sanitárias denunciam que Israel vem, desde então, impedindo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) de acessar os centros de saúde da região. O grupo aponta que “para as pessoas em Gaza, o acesso a hospitais e outras infraestruturas vitais tornou-se extremamente difícil”. 

Com as fronteiras ocupadas, Israel também vem impedindo a entrada de combustíveis, o que pode deixar as infraestruturas civis, incluindo as unidades de saúde, sem suprimentos de energia e eletricidade. “Já não havia leitos de UTI suficientes e temos muitas pessoas internadas com covid. Os hospitais não terão mais condições e elas vão acabar ficando sem oxigênio necessário e vão morrer”, denuncia Ruayda Rabah. 

Segundo a historiadora, os jovens que resistem aos ataques também chegam ao serviço de saúde extremamente feridos. “Porque as ordens são para matar. Então eles são atingidos na cabeça, olhos e nas costas. Muitos têm o tórax perfurado e não há UTIs para socorrer jovens como esses.” 

Mais mortes

Ruayda Rabah observa ainda que o número de mortos pode ser maior do que o oficialmente divulgado. Há, segundo ela, muitos corpos sob os escombros que não foram encontrados ou, mesmo quando descobertos, o corpo de bombeiros não consegue fazer o resgate por falta de equipamentos. Desde 2014, na então maior ofensiva militar, ambulâncias, carros da corporação e escavadeiras foram destruídos por Israel, que não permitiu aos palestinos a reposição de todo o material. 

“Há 48 horas, um jovem de 14 anos, –  que já havia perdido toda a família para esse conflito, foi criado pela irmã que sobreviveu, mas foi morta em 2014 após a ofensiva de Israel à Faixa de Gaza, – quando começou a nova ofensiva, ele simplesmente se suicidou, pulando de um prédio de oito andares. Veja, 14 anos”, lamentou a historiadora.

A colaboração dos Estados Unidos 

Os palestinos que residem em territórios ocupados também protestam contra a violência de Israel por meio de uma greve geral convocada para hoje pelo partido Al Fatah. Representantes da China, Tunísia e Noruega apresentaram ontem ao Conselho de Segurança da ONU um texto pedindo “o fim da violência e o respeito ao Direito Internacional Humanitário, incluindo a proteção de civis, especialmente de crianças”. Mas, pela terceira vez em uma semana, o governo de Joe Biden, dos Estados Unidos, se negou a referendar a declaração. 

Ruayda Rabah adverte que o conflito afeta inclusive a população civil de Israel. “Apesar de se dizer que o exército israelense é o mais bem preparado do mundo, ele não é. Na verdade, ele é o mais bem armado do mundo. São pessoas de 17, 18, 19, 20 anos que são obrigadas a servir o exército, queiram ou não. Mais de cinco mil pessoas estavam na reserva e hoje estão na frente da batalha. São totalmente despreparados, não conhecem a região (palestina), não sabem absolutamente nada sobre o conflito e quando entram (no território) se perdem. E o psicológico desses jovens no exército também está comprometido. O estado de Israel não está preocupado nem mesmo com a população deles.” 

Hoje somos nós, amanhã pode ser outros

“A única coisa com que Benjamin Netanyahu se preocupa é em continuar no poder, faz tudo para não ser preso”, prossegue. A historiadora se refere às acusações de corrupção contra o primeiro-ministro israelense que, há 12 anos consecutivos no cargo, pode ser condenado a até 10 anos de prisão pela Justiça. 

Emocionada, a brasileira-palestina finaliza a entrevista lembrando da mulher grávida encontrada morta no sábado (15), após ataque aéreo de Israel a um edifício de três andares. O caso foi revelado pela emissora Al Jazeera, mas a identidade da mulher não foi divulgada. Ela estava esperando um filho, há nove meses, que foi encontrado ainda na bolsa, ligado ao cordão umbilical da mãe. Apesar da tragédia, ele conseguiu sobreviver. “Que culpa tem esse bebê? Ele também é terrorista, escolheu viver onde está vivendo?”, questiona, entre lágrimas, Ruayda Rabah, que concluiu, alertando: “Não fiquem do lado da injustiça. Hoje somos nós (palestinos), mas amanhã pode ser qualquer outro povo”. 

Confira a entrevista completa

Redação: Clara Assunção


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