Crias da impunidade

Rir da tortura na ditadura: numa democracia, Bolsonaro e Mourão seriam inaptos a se candidatar

“A tortura existiu. E eu assisti”, diz ex-militar. Para Eugênia Gonzaga, deboche dos crimes de lesa-humanidade praticados na ditadura é consequência da impunidade

Agência Brasil
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São Paulo – O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, debochou ontem (18) da possibilidade de serem investigadas torturas cometidas por militares durante a ditadura civil-militar. Cobrado sobre os casos, o general da reserva do Exército riu e ironizou: “Apurar o quê?”, disse. “Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”

Para a procuradora regional da República Eugênia Gonzaga, coordenadora do Grupo de Trabalho Memória e Verdade, a fala de Mourão é “lamentável”. “É a total falta de consideração para com essas vítimas. Entretanto, não é novidade esse governo defender a morte e a tortura. Esse tipo de pessoa não poderia ser apto a se candidatar numa eleição democrática. Bolsonaro, inclusive, também já fez apologia a tortura e desdenhou das vítimas da ditadura”, criticou Eugênia, em entrevista à Rádio Brasil Atual, nesta terça (19).

A resposta de Mourão sobre as torturas na ditadura aconteceu após os áudios divulgados pela jornalista Míriam Leitão, no jornal O Globo. A colunista recebeu do historiador Carlos Fico gravações realizadas em sessões do Superior Tribunal Militar (STM), entre 1975 e 1985, sobre torturas cometidas durante a ditadura. Entre as violências que chegaram às mesas dos ministros, há tortura de grávidas, violência contra a mulher, uso de martelos para obter confissões e um sólido entendimento de que as polícias eram violentas com os presos.

Eugênia Gonzaga afirma que a revelação dos áudios é importante, porque o Brasil vive um momento de “negacionismo sobre a ditadura”, na qual se nega o “período sangrento” do governo militar. “A ditadura torturou milhares de pessoas. Inclusive, o cálculo de 434 mortos pelos militares apenas diz respeito aos militantes, sem levar em conta os mais de 8 mil indígenas assassinados e as pessoas do campo”, acrescentou.

Transição com impunidade

A coordenadora do Grupo de Trabalho Memória e Verdade diz que o Brasil não aplicou uma política de transição adequada, após encerrar o regime militar. Na avaliação dela, sem a punição correta dos militares, falas como a de Mourão, que não escondem os crimes cometidos na ditadura, serão repetidas ao longo dos próximos anos. Nesse sentido, as instituições – como a Justiça e os próprios comandantes militares – falharam ao não reconhecer e punir os crimes no momento em que ocorriam. Do mesmo modo, voltaram a falhar após a democratização ao permitir que crimes de lesa-humanidade fossem negligenciados.

“Isso é resultado da falta de política de transição. O Brasil fez uma transição da ditadura para a democracia sob coordenação dos militares. Os integrantes do Superior Tribunal Militar sabiam que havia tortura, usando palavras veladas. Existiram juízes no STM que admitiam a tortura dentro do próprio tribunal. Então, não é um segredo, mas o Judiciário se omitiu”, afirmou.

Ela acrescenta que há defensores do governo Bolsonaro que adotam o mesmo pensamento negacionista. “São pessoais desinformadas, que se passassem uma hora na cadeia porque estavam sem documento, veriam tudo diferente. Se tivessem um pai desaparecido, porque ele lia um livro, jamais acharia engraçada essa frase do Mourão. Um dia a necropolítica vai bater na porta dessas pessoas, pois num país que tem tortura, ninguém é cidadão”, concluiu.



“A tortura existiu. E eu assisti”

Reportagem de Juliana Dal Piva traz revelações feitas pelo soldado reformado Valdemar Martins de Oliveira. Em sua coluna no portal UOL, ela traz relatos do ex-brigadista paraquedista que atuou como um espião da ditadura. Oliveira trabalhou com alguns dos agentes mais violentos das Forças Armadas. E relatou como presenciou a tortura e a execução a tiros de João Antônio e Catarina Abi-Eçab, da Ação Libertadora Nacional (ALN). O casal foi assassinado após quatro horas de violência num sítio em São João do Meriti (RJ). Mas a versão da ditadura era de que haviam morrido em acidente de carro.

“A menina tomou choque na vagina, no ânus, na boca, nos lábios. Choque com um dispositivo que eles chamavam de pimentinha”, conta. Depois da revelação do episódio, a família do casal fez exames que comprovaram a causa da morte. Desse modo, oValdemar Martins de Oliveira passou a discordar dos métodos e, por isso, passou a ser perseguido por “colegas”.

Após recentes declarações do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-RJ) pedindo provas da tortura, o soldado, decidiu relembrar o que testemunhou. “A tortura existiu e existiu mesmo. Eu assisti. Estou em perfeitas condições mentais aqui para falar e estar em qualquer foro devido para falar sobre o que eu disse”, diz Oliveira. O soldado da Brigada Paraquedista como o presidente Jair Bolsonaro. “O brasileiro tem que pensar, de fato, nessa sede de poder que as pessoas têm. Não assumem o que fizeram”, afirma.

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