Era Bolsonaro

Com visão laica, Marco Aurélio Mello se aposenta e abre vaga para bolsonarista no STF

Aos 75 anos, o decano indicado por Fernando Collor em 1990 tem histórico de votações que contemplam Estado laico. Bolsonaro deve cumprir promessa e indicar um candidato “terrivelmente evangélico” para a vaga

Felipe Sampaio/STF
Felipe Sampaio/STF
Ministro votou a favor de aborto de fetos anencéfalos e da alteração do registro civil de transgêneros

São Paulo – O ministro Marco Aurélio Mello, com 75 anos, se aposenta nesta segunda-feira (12). Ele deixa a condição de decano da corte a Gilmar Mendes. Indicado por Fernando Collor de Mello em 1990, Mello é considerado “um dos grandes intérpretes da Constituição Federal de 1988”, segundo o Supremo Tribunal Federal em sua página na internet. Durante sua trajetória na Corte, Marco Aurélio participou de decisões emblemáticas, como quando relatou e votou a favor da interrupção da gravidez em casos de feto anencéfalo, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF) (54). No julgamento, de abril de 2012, o ministro seguiu o preceito republicano segundo o qual o Brasil é um Estado laico.

No relatório, que foi vencedor por 8 votos a 2, ele rejeitou a argumentação de que a permissão ao aborto de fetos sem cérebro produziria um conflito entre direitos fundamentais: os da mulher contra o supremo direito à vida. O lobby cristão pressionou alegando que os direitos da mulher não poderiam se sobrepor ao direito à vida. “Não é dado invocar o direito à vida dos anencéfalos. Anencefalia e vida são termos antitéticos”, afirmou Marco Aurélio então em seu voto. “Em rigor, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontra o direito à vida ou à dignidade humana de quem está por vir, justamente porque não há ninguém por vir, não há viabilidade de vida”, continuou.

Em outro voto no sentido do Estado laico, em que foi relator (ADI 4275) e também acompanhado pela maioria do Plenário, o ministro votou a favor de autorizar a alteração do registro civil de transgêneros sem a realização de procedimento cirúrgico de mudança de sexo.

Mais recentemente, em julgamento estritamente político, com viés sanitário,  Marco Aurélio provocou a ira do presidente Jair Bolsonaro e de seus seguidores ao relatar – com voto vencedor – tema fundamental envolvendo o combate à pandemia de coronavírus, na ADI 6341, quando o Plenário do STF concluiu pela competência concorrente de estados, Distrito Federal, municípios e União para o enfrentamento da covid-19. A decisão é pretexto para o bolsonarismo, inclusive na CPI da Covid, argumentar que o STF “limitou” as ações de Bolsonaro, que tem atacado a “Suprema Corte” desde antes de eleito. O chefe de governo culpa governadores e prefeitos  pela tragédia que já matou mais de 530 mil pessoas no país. Nos últimos dias, links com matérias jornalísticas anunciando a aposentadoria de Marco Aurélio têm sido saudados por internautas bolsonaristas com termos como “já vai tarde”.

“Estado é laico, mas somos cristãos”

Para o lugar de Marco Aurélio, o presidente da República promete honrar a promessa de indicar um nome “terrivelmente evangélico”. “O Estado é laico, mas nós somos cristãos”, afirmou Bolsonaro em diversas ocasiões, como durante um culto evangélico em plena Câmara dos Deputados há dois anos. O nome favorito é o de André Mendonça, um líder presbiteriano e atual advogado-geral da União (AGU), considerado um “carola” entre seus pares.

O ‘’terrivelmente evangélico” Mendonça tem feito árdua campanha para obter apoio do Senado, ao qual cabe chancelar ou não o nome do indicado. Segundo o jornal O Globo, os senadores Eduardo Gomes (MDB-TO), líder do governo no Congresso, e Fernando Bezerra (MDB-PE), líder no Senado, estão “escalados para costurar” a aprovação do nome. “Oficializada a indicação de Mendonça pelo presidente, a aprovação dele será certa”, disse Gomes, segundo o jornal.

Conjuntura turbulenta

“O André Mendonça vai ser mesmo indicado pelo Bolsonaro. Mas ele vai ter que costurar muito bem para passar”, diz o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão. Nome com grande influência no Senado e relator da CPI da Covid, Renan Calheiros (MDB-AL) é forte opositor a Mendonça, que precisa da maioria absoluta dos votos dos senadores (41 de um total de 81). Nos bastidores do Senado, comenta-se que Davi Alcolumbre (DEM-AP) tem feito mais do que “corpo mole” ante o nome Mendonça.

A derrota do indicado pelo presidente é muito rara. Desde a criação do STF, em 1890, apenas cinco indicações foram derrubadas pelo Senado, todas em 1894, no governo do marechal Floriano Peixoto, informa a Agência Senado. “A derrota é muito rara em condições normais de temperatura e pressão”, pondera Aragão. Atualmente, a relação turbulenta de Bolsonaro com o Congresso Nacional – especialmente com o Senado, onde funciona a CPI da Covid – expõe Mendonça a uma situação anormal.

“Precisa ver como esse moço vai dar conta”, acrescenta o ex-ministro. O ministro Edson Fachin, indicado pela ex-presidenta Dilma Rousseff, suou a camisa para conseguir passar. Em maio de 2015, os senadores aprovaram o então advogado Fachin após 11 horas de sabatina. Ele teve 52 votos a favor e 27 contra.


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