LULA 3

Em 100 dias, governo Lula caminha pela reconstrução, mas dá seus ‘tropeços’

Lentidão ante o presidencialismo de coalizão que já conhecia, ministro contestado nas Comunicações e falas impróprias são alguns dos erros de Lula em 2023

Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Lula toma posse oficialmente no Congresso Nacional em 1° de janeiro, entre Rodrigo Pacheco e Arthur Lira

São Paulo – O terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa 100 dias nesta segunda-feira (10). A proposta inicial do chefe de governo e seu ministério, após quatro anos de destruição do Estado promovida por Jair Bolsonaro, não podia deixar de ser a de um governo de reconstrução, num primeiro momento. Politicamente, Lula assumiu o Palácio do Planalto em condições adversas.

Ele teve que começar a reconstrução a partir da própria transição. Como o ex-chefe de governo se negou a participar do processo de transferência de poder e saiu (fugido) do país em 30 de dezembro, Lula assumiu sem uma transição efetiva.

Degradação e depredação

Símbolo do ineditismo negativo da herança bolsonarista, Lula e a primeira-dama, Janja, só puderam se mudar para o Palácio da Alvorada em 6 de fevereiro. A residência oficial da Presidência teve de passar por reformas, tal o estado de degradação deixado pelo casal antecessor.

Como se não bastasse, com apenas oito dias, o governo enfrentou o desafio de um golpe de Estado que aliados de Jair Bolsonaro tentaram desfechar no 8 de janeiro contra o novo mandatário, a democracia e o país.

Nos 100 dias, a gestão mostrou que tem “obsessão” pela reconstrução de fato. Relançou programas sociais, iniciou a a reformulação da economia, restaurou o prestígio internacional do Brasil. E as Forças Armadas – politizadas e divididas sob Bolsonaro – pouco a pouco voltam a seu papel institucional, o que não é pouca coisa.

Nem tudo são flores

Como um todo, o governo, seus ministros e o próprio presidente também cometem erros. Menos do que seus opositores gostariam, mas mais do podiam prever seu apoiadores. Com isso, abrem “brechas” aos adversários, moderados ou extremistas, que nas redes sociais ocuparam espaços disseminando tais erros.

A mídia comercial, como é de se esperar – e por isso o próprio Lula sempre diz que não pode errar – não perde a oportunidade de dar aos “tropeços” do governo tratamento desproporcional aos acertos no processo de reconstrução.

Lula sabe que errar é do jogo. “Quero dizer em alto e bom som: nós não precisamos de puxa-saco. Um governo não precisa de tapinhas nas costas”, disse em 22 de dezembro, dez dias antes de tomar posse, como registraram setores da mídia tradicional ou progressista.

“Um governo tem que ser cobrado todo santo dia, pra que a gente consiga aprimorar a nossa capacidade de trabalho. É isso que eu espero de vocês. Cobrem, cobrem e cobrem”, pediu Lula. “Se vocês não cobram, a gente pensa que tá acertando, e muitas vezes a gente tá errando e continua errando porque as pessoas não reclamam.”

Depois de 100 dias de governo, veja alguns pontos no cenário interno e externo onde Lula e o governo não mandaram bem.

Lentidão

Apesar de manifestar que tem pressa e sabe muito bem aonde quer chegar no combate à pobreza, na reconstrução do país e na retomada do crescimento, o governo parece ter percebido apenas ao assumir que o país vive em um regime de presidencialismo de coalizão.

Nem o governo Lula, nem qualquer outro desde a redemocratização, tiveram condições de governar sem fazer acordos e alianças com partidos e lideranças, mesmo as que não estão em seu espectro político. Isso não quer dizer corrupção, como parte da imprensa insinua. Mas pressupõe a distribuição de ministérios, postos no segundo escalão, comando de estatais. As negociações têm o objetivo de conseguir maioria parlamentar no Congresso Nacional.

No caso de Lula 3, isso já era pressuposto desde a aliança de frente ampla que o elegeu. O presidente então eleito demorou a definir certos postos e a composição da Esplanada dos Ministérios parece não traduzir a lendária capacidade política de Lula.

Presidencialismo de coalizão

Isso parece claro no caso do Ministério das Comunicações. Justamente devido ao presidencialismo de coalizão e à necessidade de apoio no Congresso, Lula montou, com razão, a pasta com um olho no Executivo e outro no Legislativo. Para isso, contrariou aliados, mas também o bom senso, ao nomear para essa pasta estratégica – da qual pode depender até a sobrevivência do governo – o deputado federal Juscelino Filho (UB-MA).

O União Brasil de Juscelino é a fusão do DEM (“neto” da Arena dos anos 1960/70) e do PSL, pelo qual em 2018 Jair Bolsonaro se elegeu. A legenda tem três pastas na Esplanada: além das Comunicações, Daniela Carneiro, ou Daniela do Waguinho (UB-RJ), no Turismo, e Waldez Goés, que se licenciou do PDT e assumiu a Integração Nacional, indicado pelo poderoso Davi Alcolumbre (UB-AP), aliado de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o presidente do Senado.

No caso das Comunicações, mais até do que as denúncias de ocultação de patrimônio, uso indevido de aeronaves do governo e de orçamento secreto para beneficiar a própria família, o grande problema do ministro é não entender nada da área que supostamente comanda.

Comunicações e redes sociais

No cotidiano, a política de comunicação representou uma guinada na comparação com a brutalidade do governo anterior. Governo e ministros passaram a conceder entrevistas, exclusivas e coletivas e tratar profissionais de imprensa com respeito. Mas o atendimento à imprensa ainda deixa a desejar, até mesmo em questões mínimas, como cumprimento de horário em agendas de autoridades.

Além disso, uma política de comunicação não se resume à interlocução com a mídia. É preciso fazer chegar à população o entendimento do que o governo pretende fazer. O chamado “povão” entende o que é arcabouço fiscal? Ou por que Lula não demite o presidente do Banco Central, já que critica tanto os juros? Aliás, o que um cidadão comum que paga 150% de juros no cartão de crédito ou no cheque especial perde com uma taxa de 13,75% ao ano?

Traduzir para o bom português

No século 21, não se fala mais em comunicações sem considerar as redes sociais. No entanto, o presidente e aliados são criticados por ainda não dominar esse universo até hoje, e nele as informações se espalham com velocidade enormemente superior aos discursos. Ao discursar pelo país em palanques, mesmo depois das eleições, em certos momentos Lula parece não perceber que sua fala não se restringe mais à região ou lugar onde está.

É o caso dos juros. Ou das falas sobre Sergio Moro. Independentemente de estar certo ou não, Lula não está falando só para aquele público, mas para o Brasil e o mundo. Sem contar o fato de que o bolsonarismo é também especialista em recortar, descontextualizar e popularizar a desinformação.

Lula tem consciência de que sua política de comunicações está devendo. Tanto que deu um puxão de orelha no ministro Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação Social (Secom), acusando falta de criatividade. O presidente dirigiu-se ao ministro para sugerir que colocasse a criatividade em funcionamento e desse novo nome ao PAC. “Sabe, mostra que a gente está renovando, inovando, que a gente tem criatividade pra fazer outras coisas”, cobrou.

Sergio Moro, juros, Banco Central

Ao falar a jornalistas do Brasil 247 sobre “foder Sergio Moro” – ainda que respondesse a um desejo manifestado quando estava na cadeia, e não a um objetivo atual –, Lula deu voz novamente ao ex-juiz. Trouxe de volta ao palco um personagem que (como a RBA ouviu de fontes consultadas) estava relegado ao ostracismo e assim deveria ficar.

Pior, depois de referir-se ao desafeto com um palavrão, Lula repetiu o ataque no dia seguinte ao dizer que o agora senador tinha armado a trama que indicava um plano do PCC contra ele (Moro). Com isso, o presidente contradisse seu ministro da Justiça, Flávio Dino, e correu o risco de minimizar o trabalho da Polícia Federal. Muitos críticos na mídia aproveitaram para dizer que o presidente estava se igualando a Bolsonaro, fazendo acusações sem provas e baseadas em teorias da conspiração.

A rusga com Moro é semelhante aos ataques ao presidente do Banco Centralm Roberto Campos Neto: contraproducente. O mercado reage, projeta juros futuros mais altos. O prejudicado é o trabalho do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que tem tentado o diálogo defendido pelo próprio Lula em nome da “frente ampla” do período eleitoral.

Alguns analistas observaram que Lula tem falado demais e sem freios porque não tem mais ao seu lado pessoas que o interpelem “de igual para igual”, como José Dirceu ou Luiz Gushiken, que tinham muita ascendência sobre o presidente. O único hoje com essa característica, talvez, seja Jaques Wagner (PT-BA), que preferiu ficar no Senado, onde é líder do governo.

Política externa

O governo acertou muito em suas primeiras investidas na política externa. Da ida aos Estados Unidos à agenda na China, na semana que vem, passando por América do Sul e Europa, marcou gols na reinserção do Brasil no mundo. Mas cometeu pelo menos dois tropeços da diplomacia – um contrariando o campo progressista, outro dando margem a seus opositores à direita.

Em fevereiro, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) aprovou resolução pedindo a retirada das tropas russas da Ucrânia. Com apoio do Brasil. A posição brasileira foi divergente dos outros membros do Brics (Índia, China, África do Sul e, evidentemente, Rússia), que se abstiveram. A postura dos Brics era a esperada para o Brasil, de acordo com sua tradição diplomática.

Em diálogo com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, por videoconferência, Lula declarou que “o Brasil defende a integridade territorial da Ucrânia”. O jornalista Pepe Escobar ironizou, no Twitter: “Lula recitou a escrita imperial sem teleprompter. Até agora, o plano americano de instalar um Cavalo de Tróia dentro do Brics é vencedor”.

Por outro lado, o Brasil foi muito criticado há pouco mais de um mês, quando não encampou uma declaração conjunta de 54 países contra o regime de exceção nicaraguense durante uma reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

O documento teve a assinatura dos governos de centro-esquerda da América Latina, como Chile e Colômbia. Peru, Guatemala, Paraguai e Equador também assinaram. A justificativa do Itamaraty foi que queria um texto sugerindo diálogo, atitude que o ditador nicaraguense Daniel Ortega não adota com os opositores que persegue.

Segurança pública

Na também estratégica área da Segurança Pública, o terceiro governo de Lula comete os mesmos erros dos primeiros mandatos. O principal, criticado por setores progressistas, é o de permitir que a extrema direita monopolize o tema, o que ajudou na ascensão do fascismo bolsonarista. Essa incompreensão fica evidente quando ocorrem crimes como o que vitimou a professora Elisabeth Tenreiro no final do mês passado.

Na ocasião, a reportagem recebeu mensagem de um membro do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania classificando o episódio como “terrível e chocante caso de violência nas escolas”. A fonte manifestou “solidariedade às vítimas e familiares” e acrescentou que “o Brasil precisa urgentemente de uma educação para a cultura da paz, para a cidadania e os direitos humanos”.

Políticos como o deputado estadual Leonel Radde (PT-RS), ex-vereador de Porto Alegre, que é policial civil, afirmaram à RBA no ano passado que a Segurança Pública precisa ser assumida como pauta pela esquerda (leia aqui). O mesmo posicionamento já foi defendido por outros líderes após a ascensão de Bolsonaro, como Marcelo Freixo, hoje presidente da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur).

A ideia é que é preciso ir muito além de notas de repúdio e manifestações de solidariedade. O próprio ministro da Casa Civil, Rui Costa, costumava dizer, quando governador da Bahia, que a esquerda precisa melhorar seu entendimento sobre segurança pública.