Compromisso

A arte de Don L e sua busca por sociedade mais coletiva: ‘É preciso combater o capitalismo’

Reconhecido como “Mano Brown do Nordeste”, rapper do Fortaleza revolucionou cena local e referências para diferentes gerações

Victor Cazuza/ DIVULGAÇÃO
Victor Cazuza/ DIVULGAÇÃO
Com trabalho aclamado em carreira solo e coletiva, Don L despontou em 2005, com o grupo Costa a Costa, que mudou o jogo para o rap no Nordeste

São Paulo – O ‘rapper favorito do seu rapper favorito’, Don L é um dos maiores da artistas da música brasileira atual. Nascido em Brasília, mas com a carreira construída em Fortaleza, Gabriel Linhares é tido por muitos como o “Mano Brown do Nordeste”, sendo responsável por influenciar diferentes gerações e apresentar novas maneiras de fazer rap.

Com trabalho aclamado em carreira solo e coletiva, Don L despontou em 2005, com o grupo Costa a Costa, reconhecido pela mixtape Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa. Através de uma estética totalmente única, apresentando novas melodias e formas de rimar, o rapper criou um marco dentro do rap nacional, em 2013, com o disco Caro Vapor/Doce Veneno.

Recentemente à Folha de S. Paulo, o cearense Matuê, rapper mais escutado da atualidade, disse que inspira na arte de Don L, que afirma ter mudado o jogo do Nordeste na cena. “Ouvi de muitos rappers, de três gerações diferentes, que sou uma das principais referências das músicas deles. Todos artistas que despontavam na cena me diziam que eu era a inspiração deles. Teve gente que dizia que estava minhas rimas. E eu não conhecido nacionalmente ainda”, relata Don.

Em 2017, veio a grande cartada da carreira do MC: o álbum Roteiro para Ainouz, Volume 3, que inicia uma trilogia contada ao contrário, passando por diversos momentos de sua carreira musical e vida. O título traz o nome do diretor cearense Karin Aïnouz, que serviu de inspiração para Don L expressar sua inconformidade e frustração com o mundo.

A musicalidade encorpada, livre e recheada de referências é produto da bagagem de Fortaleza. Entretanto, o artista, que mora em São Paulo, desde 2013, relata que sua relação com a capital paulista é mais desgastante e interferiu em sua saúde. “São Paulo te engole, porque o rimo é voltado ao trabalho, sua geografia não é voltada à vida além do consumo. Não tem uma praia, não tem convivência em comunidade”, afirma.

Uma das maneiras de fugir do caos da cidade e da rotina baseada em consumo, segundo Don L, foi o estudo sobre nutrição, alimentação e o biohacking – método de “hackear” a sua própria biologia, através de técnicas, alimentos e suplementos que auxiliam na produtividade e desempenho.

“Teve um momento que eu estava fodido de saúde em São Paulo, emocionalmente e fisicamente. A nossa criatividade tem inferência se você está mal de saúde. Então comecei a comer comida de verdade, parei com enlatados e refrigerante. Isso tem a ver com a minha arte e minha busca pessoal, que quer um mundo novo e um estilo de vida coletivo. E sigo em construção ainda, experimentando coisas novas no cotidiano”

Don L

O rapper também se destaca pelo posicionamento político, através de suas redes. Comunista, Don L não esconde suas ideias e pensamentos. Inclusive, para sua concepção de sociedade mais coletiva, o único método é derrubar o capitalismo. “Acredito numa sociedade menos desigual, sem essa coisa escrota que vemos hoje. Há recursos científicos e conhecimento acumulado para viver numa sociedade muito melhor do que a atual. A gente precisa enfrentar profundamente a raiz do problema, que é o capitalismo”, defende.

(Foto: Victor Cazuza)

Confira a entrevista com Don L

Você é um artista que parece ser buscar músicas mais encorpadas ao longo da carreira. E isso passa por diversas influências sonoras na sua arte, dando para notar a música latina, soul, reggae. Essa construção estética do Don L faz parte só de uma vaidade artística ou é um conceito de arte que você busca aprimorar cada vez mais?

A vaidade artística faz parte do DNA de qualquer artista, mas o conceito é importante e ajuda a construir algo original e novo. Sempre tento escrever a história e traçar novos caminhos. Eu comecei a fazer rap, por exemplo, para fazer algo que queria ouvir, no sentido de letra e sentimento. Sentia uma necessidade de ouvir uma coisa e não encontrava.

Musicalmente é a mesma coisa. Faço o que queria ouvir e o que queria sentir, e vejo isso ser possível com esses elementos (que coloco na música). E isso traz toda a trajetória e influência, que contribuem para somar nessa criação.

Você despontou num período em que o rap estava se transformando, surgindo uma nova geração de artistas com novas formas de fazer música. Qual é sua contribuição para o que o rap é hoje?

É difícil sair dar minha boca, mas ouvi de muitos rappers, de três gerações diferentes, que sou uma das principais referências das músicas deles. E ouvi de artistas que admiro, mas também de alguns que nem ouço.

Isso tudo foi possível porque estava em Fortaleza. O rap nordestino vem da militância política, era algo voltado à posse de bairro. Era um movimento social, musical e cultura. Com essa bagagem, nós tínhamos muita propriedade no que abordávamos. Quando falávamos de dinheiro, não era vulgar, a gente sabia sobre o que estávamos dizendo.

Quando chegamos, com o Costa a Costa, foi um baque na cultura. Nós estávamos na sede de ocupar o espaço e mostramos à cena que era possível fazer um rap popular, possível de tocar no rádio e ao mesmo tempo com conteúdo.

Recentemente, o Matuê te citou como uma referência para ele. Qual o impacto do disco Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa, na cena do Ceará e do Nordeste? Essa questão de referência faz muitos te citarem como o Brown do Nordeste e Costa a Costa, como o Racionais de lá.

Sempre existiu essa comparação, apesar de considerar o Racionais o grupo mais importante de toda a história da música brasileira. Apesar disso, me sinto lisonjeado ao ser comparado com o Brown. Quando o Costa a Costa apareceu, foi um impacto sinistro. As pessoas não acreditavam que era possível fazer rap no Nordeste, éramos vistos como segunda divisão, mas mostramos que dava para jogar o jogo. Muitos grupos que tinham parado, voltaram só por causa da gente.

Você teve uma transição de Fortaleza para São Paulo e partir disso surgiram dois discos: Caro Vapor e Roteiro para Ainouz Vol. 3. Diante de uma cidade que suga muito de nós, como essa mudança afetou e ainda afeta sua visão musical, sua carreira e até seu ritmo de trabalho?

Quando vim para São Paulo, já era o rapper favorito do seu rapper favorito. Todos artistas que despontavam na cena me diziam que eu era a inspiração deles. Teve gente que dizia que estava minhas rimas. E eu não conhecido nacionalmente ainda.

Em São Paulo, lancei uma mixtape que foi um divisor de águas. Ninguém usava o autotune como eu usava. Apresentei uma forma de falar de drogas e crime de uma maneira diferente do que existia. Depois, surgiu uma nova geração e Caro Vapor fez parte da formação dela. Em pouco tempo, me tornei um cara conhecido no universo da música.

A cidade de São Paulo te engole, porque o rimo é voltado ao trabalho, sua geografia não é voltada à vida além do consumo. Não tem uma praia, não tem convivência em comunidade. Isso se soma também com a fase do capitalismo atual, que não permite mais descanso. Estamos numa geração, inclusive de artistas, que ou você fica rico, ou se fode. Isso te deixa ansioso e deprimido. Então, você soma a geografia da cidade, o capitalismo atual e o governo Bolsonaro, pronto, é a tempestade perfeita para se foder.

Você também tem um jeito próprio de bem-estar e cuidados da saúde, seja no consumo de alimentos, em métodos de metabolismo. Tem até o lance do banho frio que você já falou bastante. Esse método de vida, esse cuidado com seu corpo e a mente, se relaciona de alguma maneira com seu processo criativo?

Teve um momento que eu estava fodido de saúde em São Paulo, emocionalmente e fisicamente. Então, vi que precisava mudar meu estilo de vida e comecei a estudar sobre nutrição e biohacking, que são intervenções no corpo através da biologia. Isso se relaciona com política e economia. Por exemplo, o estilo de vida em São Paulo é apartado na natureza, é prejudicial para nosso corpo.

A nossa criatividade tem inferência se você está mal de saúde. Então comecei a comer comida de verdade, parei com enlatados e refrigerante. Fui ler sobre a capacidade de açúcar que a gente consome no cotidiano e há estudos mostrando como é muito prejudicial. Aí você conecta isso com o capitalismo atual, com a destruição das culturas ancestrais.

Isso tem a ver com a minha arte e minha busca pessoal, que quer um mundo novo e um estilo de vida coletivo. E sigo em construção ainda, experimentando coisas novas no cotidiano.

Quero fazer uma pergunta também sobre sua relação com o tempo, a partir de algumas rimas que me chamam a atenção. Você já disse que o “destino é incerto e a estrada tem de valer a viagem”. Ao mesmo tempo, rima que o “tempo voa e não volta”. Como você dá valor à vida e à estrada, mas ao mesmo tempo se vê diante da frase “Morra bem, viva rápido”, que intitula uma de suas músicas?

A vida está muito relacionada à morte. Um trago de vida é um trago de morte. Mas a gente precisa ter o discernimento do trago de morte que vale a pena, porque muitas vezes a gente é levado ao processo de autodestruição sem motivo, só buscando se livrar dessa existência dolorosa que vivemos.

Eu acredito que essa parada de “viver o momento”, que está presente no trabalho, as pessoas podem perceber que há uma proposta de mudar o mundo, de viver em comunidade que eu acredito. Há um equilíbrio entre o “viver o agora”, mas também com o que você quer construir.

Você não esconde seu lado e suas ideias e fala abertamente sobre o comunismo, algo pouco tratado dentro do rap nacional. Em 2018, você criticou fãs e até artistas abraçarem ideias liberais e o Bolsonaro. Se o rap é uma maneira de expressão pra você, como esse posicionamento político também uma forma de expressar suas ideias de mundo?

Eu falo de comunismo porque sou comunista. Acredito numa sociedade menos desigual, sem essa coisa escrota que vemos hoje. Há recursos científicos e conhecimento acumulado para viver numa sociedade muito melhor do que a atual. Porém, estamos numa sociedade que te reprime, que trabalha contra sua própria saúde.

Há pessoas que vendem papo de empreendedor, de que trabalham enquanto outros dormem, mas está todo ferrado de saúde, com problema em casa, e ainda mentindo com essas ideias. Deu tudo certo, mas a vida tá uma merda. Agora imagina para quem é escravo do sistema, sem direito trabalhista, não vai se aposentar, vivendo sob ansiedade e insegurança.

A gente precisa enfrentar profundamente a raiz do problema, que é o capitalismo. E dentro das opções que temos para ir contra o capitalismo, a opção com maior base científica é comunismo. Vão dizer que “não deu certo”, mas o capitalismo deu certo onde? E os países capitalistas da África?

Cuba tem seus problemas, mas é um país que sobrevive na mira das armas do império, boicotada pelo mundo todo. Ninguém sabe como seria Cuba sem bloqueio econômico. Por que têm medo de Cuba? Isso sempre ficou na minha cabeça. Por que proíbem negócios com Cuba? Isso é medo de dar certo e mostrar que há alternativa ao mundo.

Isso sem falar das fake news. Vivo enchendo o saco no Twitter sobre coisas da Coréia do Norte, que é fechado pra caramba, mas tem notícias escrotas, como o corte de cabelo igual do Kim Jong-um. Tem uma mina que saiu da Coréia do Norte que disse que a desnutrição faz a costela das pessoas saírem pelas costas. Porém, ao mesmo tempo, ela diz que falta energia lá e as pessoas precisam empurrar os trens. Cara, ou as pessoas passam fome ou todo mundo é halterofilista para empurrar um trem.

Falam que comunismo é ditadura, mas a gente vive uma ditadura no capitalismo. Quando uma pesquisa mostra certo candidato subindo as pesquisas, o mercado reage negativamente. Isso é uma ditadura, onde quem manda é a classe burguesa.