Gente que transforma

Idosos da Maré, no Rio, mostram que têm lugar e talento para a arte e a tecnologia

Iniciativa integra projeto 60+ Arte e Tecnologia, da Olabi, que valoriza os saberes dos mais velhos e inova ao promover um olhar que reconhece a experiência

Gabriela Lino/ Divulgação
Gabriela Lino/ Divulgação
Projeto olha para o futuro, pensando nas pessoas mais velhas como fonte de saber e potência, explica coordenadora e idealizadora

São Paulo – São hoje mais de 29 milhões brasileiros, segundo o IBGE. Cruzaram pelos 60 anos ou mais, inaugurando a chamada terceira idade. Ainda assim, os que ganham em anos de vida têm sido retribuídos com uma sociedade que dá valor apenas à juventude. Mas uma iniciativa da organização social Olabi começa a transpor essa barreira valorizando principalmente aquilo que todos que chegam a essa fase da vida têm para contribuir: suas experiências.

É disso que se trata o projeto 60+ Arte e Tecnologia, uma ação de valorização do conhecimento daqueles com mais de 60 anos, com oficinas de práticas tradicionais e modernas.

Pelo menos desde 2014, quando o Olabi foi criado, a população mais velha é parte do público da organização, que não só trabalha para democratizar o acesso à tecnologia digital, como inclui no mesmo plano as técnicas e habilidades manuais. Uma união que, no projeto, fica a cargo de oficinas que trabalham desde a eletrônica, ao artesanato, marcenaria, estamparia, costura, bordado e design. Tudo pensando não só esse olhar de integração, mas também o envelhecimento da população, como explica a coordenadora do Olabi e idealizadora do 60+ Arte e Tecnologia, Gabriela Agustini. 

“Você tem uma série de trabalhos e coisas que eram mais desenvolvidas no passado e que vão deixando de ser um legado para as outras gerações. Então a gente resolveu, olhando para o futuro do mundo, pensando em como criar uma nova cultura onde você olhe para as pessoas mais velhas como fonte de saber, como potência, como um lugar de aprendizado, e partindo da lógica da gente mesmo querendo aprender determinadas técnicas, entender essas habilidades que estão presentes no repertório da sociedade”. 

O Brasil já é hoje, o quinto país em número de idosos, segundo o Ministério da Saúde. Só entre 2012 e 2018, essa população cresceu 26%, e, em 2030, a expectativa é que o número deles ultrapasse o total de crianças entre zero e 14 anos. “A sociedade está envelhecendo e a gente não tem respostas para os desafios globais e contemporâneos”, ressalta Gabriela.

“Se a gente não começar a juntar os olhares, a sabedoria, os repertórios dos mais jovens, das crianças, dos mais velhos e etc., a gente provavelmente continuará andando em círculos e sem respostas, que é um pouco o momento atual”, avalia a coordenadora. 

Neste ano, o 60+ Arte e Tecnologia completa a sua segunda edição com oficinas na Maré, o complexo com 16 favelas e cerca de 140 mil moradores, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, depois de ter estreado em Madureira, um dos bairros da mesma região que maior concentra a população idosa. 

No total, 40 moradores participam das atividades duas vezes na semana. “A gente usa esses espaços de encontro, a metodologia e essas técnicas como possibilidades de geração de diálogo e de troca, não necessariamente a ideia é que as pessoas saíam especialistas naquelas técnicas que a gente está trazendo, o que a gente quer na verdade é ampliar território”, destaca Gabriela. 

Monara Barreto/Divulgação

“Esse projeto 60+ me ofereceu isso, com arte, com tecnologia, me deu condições de conhecer novas pessoas. As meninas da oficina são muito eficientes, o que me agradou muito”, descreve o aposentado Luiz

Aos 70 anos, o aposentado Luiz Mota dos Santos tem aprendido exatamente isso. Criado pela avó, foi ensinado desde pequeno a costurar. Sabe fazer bainhas, colocar botões,  mas só hoje na oficina tem conseguido se dedicar à atividade. “Estou gostando muito, vou ser um costureiro renomado ainda”, brinca. 

Enquanto se dedica ao seu sonho, Luiz descobre outras habilidades como a pintura, fazendo do encontro 60+ Arte e Tecnologia uma quase sessão de análise. 

“Fiquei sabendo da oficina porque eu estava no posto de saúde, vi lá uns cartazes e panfletos e me interessei, porque estou passando ainda em um estado depressivo muito grande, eu precisava de uma terapia, uma coisa que ocupasse meu tempo, mas com alegria. E esse projeto me ofereceu isso, com arte, com tecnologia, me deu condições de conhecer novas pessoas. As meninas da oficina são muito eficientes, o que me agradou muito”, descreve Luiz. 

A doença que acomete o aposentando é “democrática”. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 11 milhões de pessoas já foram diagnosticadas com depressão no país, de todas as classes sociais, gêneros e idades.

No país que, durante a “reforma” da Previdência, recentemente aprovada pelo Congresso, tratou como privilégio os direitos sociais, seu Luiz perdeu quase 50% de sua remuneração quando estava regularmente empregado. “Quando está na ativa, a gente tem um salário, os benefícios, as promoções, essas coisas, então o salário é uma coisa, mas quando se aposenta, cai aquilo ali e, consequentemente, o padrão de vida também tem que mudar. Até eu me ajeitar depois, estou sofrendo até hoje”, relata. 

“A depressão é também pela frustração de eu querer trabalhar e com essa idade eu ser julgado como inútil. Eu procurando emprego com depressão, com a dificuldade financeira que eu estou, e mais com essas negativas para eu me recolocar no mercado de trabalho, nisso aí eu fiquei em parafuso, quase que louco com isso. Já vão fazer oito anos que eu vivo nessa situação”. 

Jurema Ribeiro Vianna tem hoje 71 anos, trabalha desde os 7 como doméstica, cuidou de crianças e idosos, mas, ao contrário de seu Luiz, não conseguiu se aposentar. “Eu não paguei (a Previdência) e não pagaram para mim também não”, justifica. 

Por conta da idade com que precisou trabalhar, não pôde ir à escola, mas não desistiu do sonho. Desde maio deste ano cursa o projeto de alfabetização voltado para mulheres na Lona Cultural Municipal Herbert Vianna, na Nova Maré. “Eu estou adorando, já sei ler alguma coisa. Eu não sabia ler nada, eu já aprendi a ler um pouquinho, faço meu nome e graças a Deus, já estou lendo alguma coisinha na Bíblia”, comemora. 

A professora que a alfabetiza, foi quem indicou a oficina 60+ Arte e Tecnologia, onde chegou para aprender a costurar, mas acabou descobrindo novas técnicas. 

“Fizemos um baú, estou satisfeita porque meu baú ficou muito bonito. Agora estamos fazendo bolsas, coisas assim. E as brincadeiras que a gente tem, as amizades que estou fazendo, para mim está sendo bom e para as meninas, minhas colegas, também, porque elas falam que estão adorando”, conta. “Tudo é uma maravilha, para mim é tudo novo. São seis professoras, cada uma ensina uma coisa e elas falam que também aprendem, deixam a gente emocionadas”, descreve Jurema. Seu Luiz ainda aponta a importância do projeto de trabalhar a tecnologia. “É ótimo e necessário”, sintetiza. “Porque a tecnologia vai mandar e já está mandando no mundo atual”. 

Coordenadora, Gabriela explica que desde a primeira edição, a iniciativa vem conseguindo essa conexão “de pessoas, saberes, linguagens, juntar uma gama de gente que tem muitas vezes tempo livre e uma disposição muito grande em aprender, ensinar e trocar. A gente achou isso muito poderoso, em um momento que o mundo está tão carente de diálogo, de construção de pontes, com tantos muros à volta”, observa. 

O muro mais difícil de transpor, o da violência

Junto ao estigma que carregam por serem idosos, moradores da Maré como Luiz e Jurema têm ainda o desafio de cruzar por um muro tão invisível quanto o do preconceito pelas suas idades, o da violência, que separa as 16 favelas em territórios dominados por facções e milícias

Agora são também alvos da política de “segurança pública” do governador Wilson Witzel (PSC-RJ), que aposta em franco-atiradores da polícia a bordo de helicópteros para mirar nos “meninos”, como descreve Jurema, e que têm tirado a vida de muitos civis. Só até agosto desde ano, 1.249 mortes foram registradas por intervenção policial, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio. 

“A violência aqui é tão grave, que às vezes eu não preciso nem de despertador para acordar. Eu acordo com barulhos de tiros. Não que seja toda a comunidade, 90% é de pessoas boas, pessoas honestas e trabalhadoras, 10% são ali o poder paralelo que, infelizmente, a segurança aqui do Rio não dá muito valor a isso, não dá valor nem à parte da saúde, quem dirá na parte de segurança, aqui a política deles é execução sumária”, crítica Luiz. 

“Isso faz com que um camarada como eu, que já vinha de um estado depressivo, aumentar cada vez mais. E onde está a terapia? Está lá no projeto 60+, é uma forma de tentar escapar de tudo isso”, acrescenta. 

Gabriela Lino/Divulgação

“As brincadeiras que a gente tem, as amizades que estou fazendo, para mim está sendo bom e para as meninas, minhas colegas, também, porque elas falam que estão adorando”, afirma Jurema

São eles, os idosos, os mais vulneráveis, ao lado das crianças, dessa política que aposta em um conflito bélico. De acordo com o aposentando, os espaços para lazer “que são mínimos” para todos, principalmente para os mais velhos, “porque eles acham que idoso estão no final da vida”, sequer tem sido possível frequentá-los. 

Jurema explica, “às vezes a gente não pode nem sair na rua, ir para as aulas, a oficina,  porque a polícia está fazendo… como se diz? operação. E a gente não pode sair de casa. Essa semana mesmo teve operação. E a gente não pode sair porque vem uma bala perdida”, relata. 

Moradora há 40 anos da Maré, na casa onde vive com o marido criou seis filhos, mas não reconhece mais seu bairro. “As crianças crescem tudo presas, não é que nem era antigamente”, ressalta. “Às vezes a gente quer fazer uma caminhada e não dá. Nem a lua vemos mais”. O que não muda, assegura Jurema, é o sentido de comunidade na Maré, mesmo diante das dificuldades

“Meus vizinhos são ótimos, aqui somos como irmãos, uma família, todo mundo unido, graças a Deus. (Fazemos) muita oração, a gente ora muito, vamos para a praça, a gente ora na praça, para que a gente tenha paz e os meninos também. Eles também por mais que eles são errados, mas a gente ora por eles, para que acabe essa violência, porque está demais. Tem muitos que estão assim porque não tem serviço para eles trabalharem. O negócio agora é com as crianças que vir, a gente poder ensinar, quebrantar o coração delas”, afirma. 

Por enquanto, mesmo com todas esses muros e obstáculos, há anos que a Maré rompe com vários deles pela cultura. A escolha, portanto, de realização do projeto não foi à toa, como destaca a idealizadora. 

“A Maré é um dos lugares que mais concentram desde anos 80 e 90, projetos sociais que trabalham com as camadas das populações mais diferentes e é uma grande celeiro cultural da cidade. Muita coisa boa saí dali, assim como muito ideia boa, muita coisa que pauta a cidade no sentido cultural, é um celeiro de bons talentos. Porque no fundo, a gente está muito para aprender mesmo. O que a gente vai aprender com as senhoras em Madureira, com as senhoras na Maré. São lugares que têm muito para se aprender”. 

Lançamento da plataforma “Aprenda com uma avó”

O 60+ Arte e Tecnologia segue com as oficinas até o final de novembro, com apoio da Lei de Incentivo à Cultura do município e patrocínio da Amil. Na primeira quinzena de dezembro o projeto lança ainda a plataforma digital, “Aprenda com uma avó”, que reunirá perfis com a história de “avós” e “avôs” que estejam dispostos a ensinar suas habilidades manuais com as artes e tecnologias. A proposta proporciona o encontro entre pessoas de diferentes localidades no Rio para uma troca de saberes e diálogos.