Câmara de São Paulo

PL de cunho religioso iguala abstinência sexual a contracepção e avança com ‘fake news’

Em votação nesta quinta (17), “Programa Escolhi Esperar” usa debate sobre iniciação sexual para desmontar direitos ao aborto legal. Autor do texto é pastor desde 16 anos e ligado à Igreja do Evangelho Quadrangular, fundada no Brasil pelo pai da ministra Damares Alves

Arquivo EBC
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Objetivo do PL é "criar mais barreiras ao aborto legal, previsto desde 1940". Mulheres protestam contra projeto considerado inconstitucional pela Defensoria de São Paulo

São Paulo – Em votação no plenário da Câmara Municipal de São Paulo nesta quinta-feira (17), o projeto de lei que institui o chamado “Programa Escolhi Esperar” tem chamado atenção no debate público pelo modo, considerado “equivocado” por uma maioria de especialistas no tema da gravidez precoce, de igualar a abstinência sexual a métodos contraceptivos cientificamente comprovados. Mas o PL 813/2019 traz em seu texto um detalhe ainda mais grave, segundo autoridades no tema, que, na ponta, pode implicar em criar na prática mais barreiras ao aborto legal previsto em casos de abuso sexual e de risco à vida da pessoa gestante desde 1940. Ou ainda, mais “recente”, da realização do procedimento em gravidez de feto anencéfalo, autorizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012. 

A apreensão quanto à possível brecha para retrocesso está relacionada ao quarto inciso do segundo artigo da proposta. O trecho trata da execução do programa pelas secretarias de Educação e Saúde. Nele, o autor do PL, o vereador Rinaldi Digilio (PSL), estabelece que será desenvolvido o “monitoramento de possíveis casos para avaliação e cuidado, promovendo interdisciplinaridade entre os profissionais que irão atuar no segmento”. 

O PL, porém, não detalha quais “casos” serão acompanhados. A suspeita da psicóloga e doutora em Saúde Coletiva Cristiane da Silva Cabral, professora do Departamento de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), é que se tente colocar como compulsória a notificação de gestação. Nesse caso, poderia obrigar crianças e jovens a levar a gravidez até o fim, ainda que fruto de crime.

Direitos ameaçados

A docente remete à saga da menina de 10 anos, no Espírito Santo, em agosto do ano passado. O caso alardeou a violência sexual no país contra crianças e adolescentes.  Vítima por anos de abuso pelo próprio tio, a menina, após ter sido engravidada, foi levada ao serviço de interrupção da gestação, previsto no Código Penal. Mas precisou enfrentar uma batalha para conseguir exercer seus direitos. Isso porque, impondo-se contra a escolha da família da vítima, a ministra Damares Alves (da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), teria agido nos bastidores para tentar impedir que a menina passasse pelo procedimento. A chefe da pasta é acusada de enviar representantes do ministério e aliados políticos para pressionar a família, oferecendo inclusive vantagens ao Conselho Tutelar local. 

“Nesse projeto, para mim, é o ovo da serpente guardado nesse item quatro. Esse monitoramento de possíveis casos volta na minha cabeça a essas duas coisas. Tanto a proposta de notificação de gravidez, a partir dos testes principais, registrar rapidamente a gravidez e começar a acompanhar, quanto esse, da criança do Espírito Santo. Porque aí novamente eu consigo descolar ‘profissionais’ para começar a incidir e até dissuadir adolescentes que tenham esse direito de buscar, por exemplo, uma interrupção legal da gravidez”, compara Cristiane.

“A proposta contida é essa. É uma forma de eles minarem outros direitos reprodutivos que tenham a ver com o aborto legal. E, claro, o aborto ilegal. Porque uma mulher que se descobre grávida, se ela não quiser levar a gestação adiante e tiver recursos, ela vai atrás do aborto ilegal. Temos que parar com essa hipocrisia de que não vai”, completa. 

As ligações

O vereador Rinaldi Digilio é pastor desde 16 anos e ligado à Igreja do Evangelho Quadrangular, fundada no Brasil pelo pai de Damares, Henrique Alves Sobrinho, e da qual a agora ministra também foi pastora. A instituição cristã evangélica também está relacionada à incursão do governo federal no Espírito Santo, conforme identificou reportagem do jornal Folha de S.Paulo. A Igreja do Evangelho Quadrangular é descrita como parceira do hospital para onde mulheres “da confiança da ministra” levariam a criança para fazer o pré-natal até que ela estivesse pronta. De uma forma geral, a agenda antiaborto, inclusive em casos previstos pela legislação, é um dos principais compromissos da ministra da Mulher. 

A defesa da abstinência sexual pelo vereador paulistano também está em sintonia com o que defende Damares. O nome do projeto faz referência ao movimento criado em 2011 denominado “Eu Escolhi Esperar”. A partir de uma perspectiva religiosa, a iniciativa propõe aos jovens que esperem até o casamento para ter relações sexuais. O discurso deu origem a um instituto com o mesmo nome que só ganhou de fato força dois anos atrás, quando seu fundador, o pastor Nelson Neto Júnior, se tornou interlocutor do ministério de Damares para a formulação de políticas públicas que preconizam a abstinência sexual. 

Rinaldi nega, no entanto, que seu projeto trate de igualar a ausência de relações sexuais como um método contraceptivo. Segundo o vereador, o objetivo do PL seria “prevenir e conscientizar sobre a gravidez precoce”. “Disseminando informações sobre medidas preventivas e educativas em Unidades Básicas de Saúde (UBSs), hospitais, escolas, organizações não governamentais e outras entidades.”

Agenda antiaborto

Na primeira audiência pública sobre o tema, realizada em 25 de maio, Rinaldi alegou, por exemplo, que o projeto visava a “orientar os adolescentes para que escolham por conta própria esperar mais. Seria só mais um método que se somaria a nossa rede”. Em sua conta no Facebook, o vereador promove também uma campanha em que associa a gravidez imprevista como uma consequência do início da vida sexual na adolescência. Também politiza a assunto, ao opor o seu PL a outro, de número 168/2021, de autoria de parlamentares do Psol, que busca instituir na capital paulista o Programa de Atenção Humanizada ao Aborto Legal em casos juridicamente autorizados.

“Ou seja, ou criamos medidas de orientar e educar os adolescentes sobre gravidez precoce ou a Esquerda (sic) vai colocar o aborto para resolver o problema”, escreveu Rinaldi em uma postagem na última segunda-feira (14). 

Vereador politiza discussão sobre direitos das mulheres e violência sexual (Reprodução/ Facebook)

Abstinência está nas entrelinhas

À  frente da resistência contra o “Programa Escolhi Esperar”, as vereadoras Juliana Cardoso (PT) e Luana Alves (Psol) contestam as alegações do parlamentar do PSL. “O projeto é vago em seu conteúdo. Ele não fala como vai ser esse processo, o que vai ensinar. O nome escolhido faz menção ao movimento nacional que tem como método de ensinar sexualidade para a juventude a abstinência sexual até o casamento. O que para nós não tem nenhum problema. Se você quiser ensinar na igreja, na comunidade. Não temos gerência sobre isso. Agora, colocar esse método para a juventude nas escolas de São Paulo, com dinheiro público, não dá”, adverte Luana. 

Vítima da violência política de gênero pela sua oposição ao projeto, a vereadora Juliana acrescenta que está “explícito o objetivo de propor uma política pautada na questão da abstinência e não na informação sobre métodos anticoncepcionais, uma discussão responsável sobre a sexualidade”. “O vereador e seus apoiadores negam. Mas nas duas audiências públicas sobre o projeto, o vereador convidou o consultor científico do Escolhi Esperar, o doutor Thiago de Melo Costa Pereira”, ressalta, em referência ao pesquisador da Universidade Vila Velha (ES), que consta como associado ao Instituto.

Na página do Instituto Escolhi Esperar, Thiago de Melo Costa Pereira é citado como pesquisador e cientista do grupo (Foto: Reprodução)

A reportagem consultou as parlamentares quanto à possibilidade do inciso quarto do texto ser uma maneira de impedir o aborto legal. Embora não esteja colocado diretamente, Luana acredita que ele pode ser uma “preparação de terreno” para essa finalidade. Juliana analisa ainda que não é à toa que o projeto não fala sobre a questão da violência sexual contra criança e adolescente. “Porque, na concepção deles, as mulheres e meninas estupradas deveriam ser obrigadas a levar até o término a gestação”, afirma.

Violência sexual e a gravidez

Com uma média de 26 mil nascimentos por ano, o Brasil lidera na América do Sul o ranking de gravidez infantil forçada. Dados do DataSUS, o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde, mostram que 657.180 bebês nasceram de crianças de até 14 anos, a maioria em decorrência de violência sexual, exercida principalmente por conhecidos das vítimas. Mais da metade dos casos de estupro reportados no país, 63,8%, foram cometidos justamente contra vulneráveis, crianças menores de 14 anos, considerados juridicamente incapazes de consentir com uma relação sexual, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Os dados reforçam que o estupro é a principal causa da gravidez precoce. “As investidas contra o desmonte do serviço de aborto legal na cidade estão acontecendo nessa gestão e os ataques vêm por todos os lados. Primeiro pelo Executivo que, logo no começo da gestão (do governador João) Doria (PSDB), deixou que o primeiro serviço de aborto legal do Brasil, no Hospital Jabaquara, com falta de funcionários. E daí a gente vê como as coisas se ligam. Porque sem concurso público e com a entrega para as Organizações Sociais da Saúde que são vinculadas a entidades religiosas explícita ou implicitamente, você coloca o serviço em risco. Porque as entidades vão se negar a fazer”, compara a vereadora do PT. 

Projeto abre brecha para retrocessos

Ataques também ocorrem via parlamento, como descreve. “Em 2019, entrou na pauta da imprensa o PL do (vereador) Fernando Holiday (Novo), que falava de internar mulher que tivesse o risco de fazer aborto. Ela passaria por psicólogo, padre, pastor, viria vídeos sobre aborto, imagens do feto. Tudo isso pra fazer a mulher desistir do aborto. Uma verdadeira tortura. E olha, estamos falando dos casos em que o aborto é legal no Brasil. Mulheres que têm o risco de morrer se levarem a gravidez a diante, dos casos de anencefalia e dos casos resultantes do estupro. É uma barbárie. Porque nenhuma mulher é obrigada a fazer o aborto. O aborto legal existe pra garantir o direito dessas mulheres decidirem o que vão fazer. E ai tem um detalhe ainda mais perverso porque no caso do estupro a gente está falando também de crianças e adolescente”, lamenta Juliana Cardoso.

Do ponto de vista jurídico, o entendimento quanto ao risco de retrocesso pelo dispositivo de acompanhamento de “casos” também é notado pela Defensoria Pública de São Paulo. A defensora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres Nalida Coelho Monte observa que caráter “vago” do PL Escolhi Esperar, e a falta de conteúdo sobre o que constituirá esse “monitoramento”, abrem brecha para o uso ideológico e religioso. 

Defensoria: PL é inconstitucional

“E aí poderia também implicar inclusive em desrespeito a outras garantias fundamentais previstas na Constituição, incluindo sigilo e privacidade. Porque essas informações para serem trocadas entre equipes interdisciplinares precisam de protocolo, de consentimento da parte envolvida, é algo complexo. Tendo a concordar com essa avaliação de que pelo modo como o conteúdo está disposto e, principalmente, pelo fato dessa legislação ser vazia, é possível sim que esse tipo de conduta seja adotado no âmbito do Executivo no momento em que essa política foi formulada, baseada nesse dispositivo legal”, afere. 

Em conjunto com defensores do Núcleo da Infância e Juventude, Nalida é autora de nota técnica que classifica o projeto do vereador do PSL como “inconstitucional” por ferir a “laicidade do Estado” e o princípio de “impessoalidade da Administração Pública” ao promover os interesses de uma entidade religiosa. O documento do órgão cita ainda que o PL atinge o “princípio da proporcionalidade”. A defensora explica à RBA que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já dispõe de medidas com esse objetivo do projeto. A lei, portanto, se torna desnecessária.

“Essa matéria já foi contemplada de um modo geral. No ECA tem um dispositivo que fala sobre a existência da Semana na Gravidez na Adolescência. E se aborda, de um modo genérico, que nessa semana será disponibilizado informações para adolescentes nas escolas sobre a gravidez e as consequências dela na adolescência”. Segundo a defensora, o fortalecimento das medidas já previstas que deveria ser de esforço dos legisladores. 

O que deveria ser feito

“Nos parece que políticas que tivessem o objetivo de enfrentar a gravidez precoce deveriam estar mais preocupadas com enfrentamento de uniões precoces, incluindo matrimoniais, com o estabelecimento de redes de compreensão e apoio para reduzir a graviidez precoce. Aumentar o uso de contraceptivo, deixar de ter barreiras para o uso, e reduzir as relações sexuais sob forma de coação, além do aborto em condições perigosas. E ampliar a atenção qualificada antes, durante e depois do parto”, cita. 

Estudiosa do tema desde o início dos anos 1990, a professora de Saúde Pública da USP Cristiane Cabral também fala na importância do enfrentamento da violência sexual dentro de casa. “Isso implica em dizer coisas sérias de que a família não é um lugar só de amor e afeto, mas de muita violência. Queremos mudar isso? Então é falar das diferenças de poder que existem entre homens e mulheres. Da diferença de poder que existe entre os mais velhos e os mais novos”. Há duas décadas que o Brasil debate a gravidez precoce como um problema de saúde pública, negar isso, contesta a especialista, é ser anticiência.

“Para enfrentar esse problema de saúde pública, temos que colocar uma lupa em outros fenômenos, e não apenas na idade da iniciação sexual. Isso é um verdadeiro equívoco”. “Esse PL não é pensado na iniciação sexual realmente, isso é cortina de fumaça. O que está em discussão aqui é criar na prática mais barreiras do que já tem ao aborto legal”, conclui Cristiane. 

Mobilização e resistência

Para tentar impedir a aprovação do PL 813, que já conta com posição favorável do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), também ligado à ala conservadora da Igreja Católica, coletivas feministas e movimentos sociais realizam na tarde de hoje ato em frente à Câmara Municipal.

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