Paranoia

Promotora de Santa Catarina pediu perícia em feto após aborto legal de criança vítima de estupro

Deputado faz nova denúncia contra promotora Mirela Dutra Alberton, que já foi denunciada no Conselho do Ministério Público. “Tortura”, criticam juristas

PM de Garopaba/Divulgação
PM de Garopaba/Divulgação
Criminalista avalia que a promotora Mirela Dutra Alberton (na foto, à direita) "está criando um crime na cabeça dela, de acordo com a orientação ideológica dela, contra a lei"

São Paulo – Em uma tentativa de criminalizar a menina de 11 anos que teve de se submeter a aborto legal após ter sido engravidada por estupro, em Santa Catarina, a promotora Mirela Dutra Alberton, lotada na 2ª Promotoria de Justiça do município de Tijucas, naquele estado, abriu investigação para determinar a “causa que levou à morte do feto”. É o que revela reportagens do The Intercept Brasil e do portal Catarinas, publicadas nesta quarta-feira (6). Os veículos tiveram acesso ao requerimento da promotora, enviado à polícia científica catarinense com rubrica de “urgência”.

No entanto, de acordo com juristas, a investigação que a promotora deseja iniciar não tem fundamento legal, uma vez que a garantia do direito ao aborto em caso de estupro é prevista em lei desde 1940. Portanto, não há conduta a ser criminalizada.

Além disso, não há dúvidas de que a menina, que tem menos de 14 anos, foi vítima do crime classificado como estupro de vulnerável. Laudos médicos, anexados ao processo, também apontaram que a manutenção da gestação colocaria em risco a sua vida. 

Mesmo assim, Mirela oficializou pedido – e foi atendida – de “exame pericial” para confirmar, em especial, se houve aplicação de cloreto de potássio para a parada dos batimentos cardíacos ainda no útero, procedimento conhecido como assistolia fetal. Os restos fetais foram recolhidos na noite de 24 de junho.

O deputado federal Alexadnre Padilha (PT-SP) ingressou com nova representação no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) contra a promotora. A solicitação foi adicionada a representação já feita quando o caso veio a público. “Não bastasse o constrangimento à criança estuprada e sua mãe, agora busca-se constranger as equipes de saúde que estavam garantindo um direito legal e não um crime”, disse o deputado. O parlamentar pede ao CNMP investigação da conduta de Mirela.

Abuso de poder

Apesar de o procedimento e a vítima estarem respaldados pela lei, o juiz José Adilson Bittencourt Junior afirmou em despacho que não se opunha ao requerimento da promotora, nem ao acesso a informações médicas da paciente. Por outro lado, a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) chamou de “inverídicas as informações de que o juiz autorizou o recolhimento do feto e disponibilizou o prontuário médio”. 

Segundo a nota, o “magistrado tão somente se manifestou no sentido de que não caberia a ele decidir sobre tal pedido”. O Intercept e o portal Catarinas questionaram as justificativas do requerimento e que leis que amparavam o ofício da promotora, já que o aborto foi realizado de forma legal

Os veículos também quiseram saber qual crime seria investigado e quais seriam os possíveis suspeitos. As mesmas perguntas também foram direcionadas à promotora Mirela Dutra Alberton. Por meio de assessoria do Ministério Público, ela declarou que não se manifestaria, alegando que o processo corre em sigilo. 

A criminalista Marta Machado, professora e pesquisadora da Afro Cebrap – Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial – chamou de “delírio” o pedido do MP. De acordo com a criminalista, Mirela “está criando um crime na cabeça dela, de acordo com a orientação ideológica dela, contra a lei. Está violando o princípio da legalidade, que é o direito ao aborto legal”. Ainda segundo Marta, a promotora “amplia a revitimização da menina e sua família”. “Ela está instrumentalizando o Estado para perseguir um crime que não existe. Está claramente abusando do poder dela. Além disso, viola o direito à intimidade da menina”, garante. 

Tortura  

Mirela é a mesma promotora que, em conluio com a juíza Joana Ribeiro Zimmer, negou o acesso da criança ao aborto, previsto em lei, e pressionou pela manutenção da gravidez e do parto antecipado mesmo contra a vontade da menina e sua mãe. A criança chegou a ficar afastada da família por mais de um mês para não ter acesso ao procedimento, realizado apenas após recomendação do Ministério Público Federal (MPF), em 22 de junho. 

A procuradora do MPF Daniela Escobar, que recomendou ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, ligado à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que fizesse o aborto na menina, disse também desconhecer “fundamentos jurídicos que embasaram um pedido destes” da promotora.

Mirela já é investigada por sua conduta pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

A constitucionalista Eloisa Machado, professora da FGV em São Paulo, destaca que a atuação do CNMP sobre o que classifica como “gravíssima violência institucional” será decisiva. De acordo com Eloisa, “a tentativa de transformar o aborto legal, previsto em lei desde a década de 1940, em crime de homicídio, é inconstitucional, inconvencional e ilegal”, garante. Promover a devida responsabilização desse caso, acrescenta, “sinalizará para todo o sistema de justiça que uma menina vítima de violência sexual que busca a interrupção da gestação tem que ter o seu direito garantido”. Nas redes sociais, juristas e ativistas também destacaram a atuação da promotora como uma forma de “tortura” contra a criança de 11 anos. 

Confira as repercussões

Redação: Clara Assunção