Revolta

Aborto de menina grávida após estupro não devia ter ido ao Judiciário, diz OAB. Hospital não poderia negar

Psicóloga observa que criança foi “revitimizada” pelo Estado ao ter aborto negado por erros de hospital, promotora e juíza do caso

HU-UFSC/Divulgação
HU-UFSC/Divulgação
Para conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello, do CNJ, destacou: "Não se pode falar em pai. Estamos falando de um estuprador"

São Paulo – A presidenta da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), Patrícia Vanzolini, defendeu, nesta quarta-feira (22), que o caso da menina de 11 anos, grávida após ser vítima de estupro, em Santa Catarina, “nem deveria ter chegado ao Judiciário”. De acordo com a seccional, a família buscou acesso ao aborto legal, ou seja, um direito previsto em lei. Então, o Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, o HU, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), errou ao se recusar a fazer a interrupção da gravidez. 

Na época com 10 anos e 22 semanas de gestação, a criança teve seu direito negado pela unidade de saúde, que alegou que só faria o procedimento em gestações de até 20 semanas. O Código Penal permite, no entanto, o aborto em caso de violência sexual, sem impor limitação de semanas da gravidez ou exigir autorização judicial. O hospital informou à criança e sua mãe que somente faria o procedimento após decisão judicial. 

“Isso nem deveria ter chegado ao Judiciário. Sendo direito previsto na lei, o hospital deveria ter feito (aborto em uma criança estuprada), sem autorização judicial. O que o hospital tem que analisar é se é possível realizar a intervenção, do ponto de vista médico. Nada a ver com o Judiciário”, observou a presidenta da OAB-SP em entrevista ao portal UOL

Entenda o caso

De acordo com Patrícia, o que poderia acontecer é um médico, individualmente, alegar “exceção de consciência” por crenças pessoais. No entanto, “o hospital, enquanto ente do Estado, não pode (se recusar a fazer o aborto)”, explicou. “Se o ‘médico A’ não pode, tem que conseguir o ‘médico B'”, acrescentou a jurista. O Ministério Público Federal (MPF) anunciou, nesta terça (21), que um inquérito civil foi instaurado para “apurar os fluxos e trâmites do HU” em relação ao caso. Desse modo, o caso da menina grávida após estupro que teve o aborto deve ter ao menos três investigados por conduta irregular. Primeiro, o hospital. Depois a promotoraMirela Dutra Alberton e também a juíza Joana Ribeiro Zimmer.

A história ganhou repercussão na segunda-feira (20) após os sites The Intercept Brasil portal Catarinas revelarem que a menina, atualmente com 11 anos, estava sendo mantida pela Justiça em abrigo, no município de Tijucas, há mais um mês, para impedir o aborto. A reportagem teve acesso a audiências do caso que mostram a promotora e a juíza pressionando a vítima e sua mãe, contra a vontade delas, a seguir com a gravidez e realizar o parto antecipado. Ambas defendem que a gestação prossiga para que o bebê seja entregue à adoção. Mas isso em contrariedade ao direito da família e aso riscos à saúde da criança, apontados em laudos médicos anexados ao processo. 

‘Não é pai, é estuprador’

O caso chegou à justiça após o hospital negar o aborto à criança. Em uma das audiências, a magistrada chegou a perguntar à vítima se ela acha “que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção”. A conduta de Joana é alvo de diversas representações no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Uma delas, ingressada ontem, partiu de de sete conselheiros do órgão. 

Durante sessão do CNJ nesta terça, o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello destacou que a menina foi também vítima de “violência institucional”. “Eu tenho uma filha de 10 anos também. Eu imagino a agonia que é uma violência dessas com sua filha e depois ainda tentarem tratar com algum grau de carinho essa situação, como, por exemplo, perguntando ‘que nome você gostaria de dar pro bebê?’ ou ‘você acha que o pai concordaria em dar pra adoção?’. Não estamos falando de pai. Estamos falando de um estuprador”, contestou.

A promotora do caso, que pediu à menina que mantivesse a gravidez “por mais uma ou duas semanas” e ainda comparou de modo indevido o aborto à eutanásia, também terá sua conduta investigada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A Corregedoria-Geral do MP de Santa Catarina também afirmou que iniciou ontem um procedimento disciplinar para apurar a atuação de Mirela Alberton. O processo corre em segredo de Justiça. 

Revitimização pelo Estado

Ainda ontem, a criança recebeu recebeu autorização da desembargadora Cláudia Lambert de Faria para voltar para casa. A defesa dela também impetrou um habeas corpus no Tribunal de Justiça para que seja determinado o aborto legal da menina. Psicóloga e integrante do Observatório da Mulher, Rachel Moreno, também comenta que a criança sofreu um “assédio institucional”. Em entrevista ao Jornal Brasil Atual, a apresentadora do programa “Observatório da Mulher”, da Rádio Madalena, defendeu o afastamento da juíza. 

“Ela utilizou de métodos de terrorismo psicológico, promoveu a revitimização da menina e violou normas legais e direitos e garantias. Portanto, na verdade, é chocante tudo o que ela fez. (…) A magistrada cometeu uma série de crimes e deveria ser punida por isso”, justificou a psicóloga. O advogado criminalista e membro do Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (Caad) José Carlos Portella Júnior também defendeu, na Rádio Brasil Atual, mudanças no sistema de justiça brasileiro. A começar pela implantação do controle externo e democrático sobre o Poder Judiciário. 

Portella lembrou que o juiz Mônami Menine Pereira, do Tribunal do Júri de Florianópolis, chegou a autorizar o aborto legal. Mas ele próprio cassou o alvará após a promotora pedir para o caso retornar a competência da juíza Joana Ribeiro Zimmer. O que foi visto como uma manobra para justamente impedir a interrupção da gravidez. Um conluio, de acordo com jurista, que ficou explícito na Lava Jato. “Não se tem controle externo do Judiciário e quando se tentou fazer pelo CNJ, que foi uma criação do governo Lula, houve uma gritaria dos juízes que esvaziaram o CNJ. (…) Volta e meia se denuncia uma violência ao CNJ, mas nada acontece. Um exemplo clássico é o do ex-juiz Sergio Moro. Quantas e quantas reclamações não feitas e todas arquivadas”, criticou. 

Ato amanhã 

Com a reviravolta do caso, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) no estado de São Paulo está organizando protesto para esta quinta (23), em frente ao Ministério Público Federal na capital paulista (Rua Frei Caneca, 1.360). O ato está previsto para as 17h. O coletivo feminista Juntas! também criou um abaixo-assinado para pressionar pelo afastamento da juíza do exercício de suas funções. O documento já foi assinado por mais de 70 mil pessoas. 

Joana acabou sendo promovida e transferida para a comarca de Brusque, no Vale do Itajaí, e deixou o caso ontem. Em entrevista ao Diário Catarinense, a magistrada alegou que “não é contra o aborto”. Mas, que no caso da menina, o “aborto passou do prazo”. 

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