Violência judicial

OAB vai atuar na defesa de menina de 11 anos vítima de estupro, que teve negado o direito ao aborto

Criança está em um abrigo em Florianópolis há mais de um mês por decisão da justiça, para evitar que o procedimento seja feito. Juíza será investigada

Solon Soares/Assembleia Legislativa de Santa Catarina
Solon Soares/Assembleia Legislativa de Santa Catarina
Juíza Joana Ribeiro Zimmer perguntou à menina de 11 anos, vítima de estupro, "se o pai do bebê", em suas palavras, concordaria com a entrega para a adoção

São Paulo – A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Santa Catarina informou, ontem (20), que atuará pela garantia de proteção à vida e acolhimento integral da criança de 11 anos que ficou grávida após ser vítima de estupro. Em nota assinada pelo presidente da Comissão de Direito da Criança e do Adolescente da OAB-SC, Edelvan Jesus da Conceição, o órgão disse ver com “muita preocupação” a denúncia de que a menina está sendo mantida pela justiça e o Ministério Público do estado em um abrigo, na Grande Florianópolis, há mais de um mês, para evitar que ela tenha acesso ao aborto legal. 

A OAB destaca que, entre as situações em que a legislação brasileira autoriza a interrupção da gravidez, estão a violência sexual e o risco de vida para a gestante, nas quais se enquadram o caso da criança. “Diante disso, estamos buscando junto aos órgãos e instituições com atuação no caso todas as informações necessárias para, de forma incondicional, resguardarmos e garantirmos proteção integral à vida da menina gestante, com embasamento em laudos médicos e nas garantias legais previstas para a vítima em tais situações”, ressaltou.

O órgão também anunciou que trabalhará para que a vítima receba amparo integral, incluindo o retorno ao convívio familiar. 

Pressão de juíza

A denúncia de que a Justiça negou o aborto, autorizado em lei, a uma menina de 11 anos vítima de estupro, veio à tona ontem, após uma reportagem do site The Intercept Brasil, produzida em conjunto com o portal CatarinasOs veículos tiveram acesso aos autos do processo e à gravação de uma audiência, enviada por uma fonte anônima, que mostram que, a despeito do desejo manifestado pela criança e sua mãe, – responsável legal pela vítima –, pela interrupção da gestação, a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora Mirela Dutra Alberton, lotada na 2ª Promotoria de Justiça do município de Tijucas, vêm pressionando pela manutenção da gravidez e do parto antecipado. 

O caso chegou à Justiça após a equipe médica do Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, ligado à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), se recusar a realizar o procedimento, em 4 de maio. A unidade alegou que, pelas normas do hospital, o aborto só era permitido até a 20ª semana de gestação. A menina, que à época tinha 10 anos, segundo a reportagem, estava com 22 semanas e dois dias. O Código Penal permite, no entanto, o aborto em caso de violência sexual, sem impor qualquer limitação de semanas da gravidez ou exigir autorização judicial. 

Dois dias depois, a promotora Mirela Dutra Alberton ajuizou uma ação cautelar pedindo o acolhimento institucional da menina. Segundo ela, a criança deveria ser encaminhada ao abrigo para se proteger do agressor. A reportagem mostra que, na autorização da medida protetiva, a juíza Joana Ribeiro Zimmer comparou, no entanto, a proteção da saúde da menina à proteção do feto. “Situação que deve ser avaliada como forma não só de protegê-la, mas de proteger o bebê em gestação, se houver viabilidade de vida extrauterina”, escreveu. 

Pressão de juíza e promotora

As imagens de uma audiência no dia 9 de maio mostram ainda a juíza e a promotora sugerindo à criança que mantenha a gravidez por mais “uma ou duas semanas”. O intuito é aumentar a chance de sobrevida do feto. Embora inicialmente Alberton tenha reconhecido que a gravidez era de alto risco e que uma criança “não possui estrutura biológica em estágio de formação apto para uma gestação”, ela pede à vítima que siga com a gestação “para que o pulmão do feto se forme”. 

O aborto é mencionado, mas comparado à eutanásia. “Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele… Ele vai nascer chorando, não [inaudível] medicamento para ele morrer”. Aos portais de notícia, Mirela Alberton alegou que “não sabia que o aborto era realizado de forma que o feto saísse do útero já sem batimentos cardíacos”. 

A juíza segue com a audiência, acrescentando a ideia de que a gestação prossiga para que o bebê seja entregue à adoção. Joana chega a perguntar à criança se ela acha “que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção”. Ao que a menina responde, em voz baixa, “não sei”. A magistrada diz à mãe da vítima que “essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”. A mãe responde aos prantos que “é uma felicidade, porque não estão passando o que eu estou”. 

Violação de direitos 

A psicóloga Thais Micheli Setti, funcionária da prefeitura de Tijucas que acompanha a menina, registrou, após atendê-la, em 10 de maio, que a criança mostrou que não entende o que está acontecendo. “Apresentou e expressou medo e cansaço por conta da quantidade de consultas médicas e questionamentos, além do expresso desejo de voltar para casa com a mãe. Relatou estar se sentindo muito triste por estar longe de casa e que não consegue entender o porquê de não poder voltar para o seu lar”, diz o laudo.

A menina já caminha para a 29ª semana de gravidez que leva, em média, 40 semanas. Para juristas, a condução da audiência é um “show de horrores” e uma “aberração”. A avaliação é que a questão jurídica, levada pela juíza, de que a o aborto só é autorizado até 22 semanas, também não se sustenta, segundo os especialistas que apontam uma série de irregularidades na conduta de Joana Zimmer e Mirela Alberton.

“Estuprada uma menina de 10 anos de idade, simplesmente a justiça decidiu que era melhor aguardar que o bebê nascesse, ainda que prematuro, para dá-lo em adoção. Tentou-se convencer a menina e a mãe dela para aguardarem o prazo com uma linguagem perversa, falando em ‘neném’, em ‘bebezinho, seu filhinho’, perguntando se ela queria escolher um nome”, criticou a desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias, também vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família à reportagem. 

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Investigações 

Ainda segundo o The Intercept e o portal Catarinas, o fato de a mãe e a menina reiterarem o desejo de fazer o aborto aumentou a resistência da juíza em tirar a menina do abrigo. “A situação é clara: há o risco para o bebê em gestação, como bem acentuou o curador nomeado para o bebê em gestação, e há o risco de violência psicológica com a menina”, argumentou Joana Zimmer em um despacho de 1º de junho. 

Dois dias depois a justiça autorizou que a mãe ficasse com a filha no local. Mas, apenas na sexta (17), elas conseguiram de fato ficar juntas. Apesar de o primeiro laudo médico não ter apontado risco de morte para a menina, exames posteriores, anexados ao processo, recomendam a interrupção da gravidez para preservação da saúde da criança. Em um dos laudos, de 10 de maio, a médica Maristela Muller Sens recomenda o aborto, alegando riscos como anemia grave, pré-eclâmpsia, maior chance de hemorragias e até histerectomia – a retirada do útero, consequência irreversível.

A Corregedoria do TJ-SC informou que investigará a conduta da magistrada. O caso segue sob sigilo. Em nota aos veículos, a juíza disse que “não se manifestará sobre trechos da referida audiência, que foram vazados de forma criminosa”. A promotora argumentou que “no momento da propositura da ação era nítido que a infante não estaria sujeita a qualquer situação de risco concreto, o que, inclusive, tem se confirmado em seu acompanhamento”. 

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