Solidários ou nada

Agricultores familiares doam toneladas de alimentos à prefeitura de São Paulo

Em combate à fome, produtos foram entregues ao Banco de Alimentos por cooperativas do Vale do Ribeira. “Precisamos sair dessa crise construindo economia solidária”, diz presidente da Unisol

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Banco de Alimentos atende 310 entidades assistenciais, que entregam alimentos e refeições aos que estão em insegurança alimentar

São Paulo – Para muitas famílias da capital paulista, para as quais a fome já havia chegado antes mesmo do coronavírus, são produtos da agricultura familiar que irão suprir a demanda por alimentação enquanto durar a pandemia e crise sanitária. Nesta quinta-feira (16), 13 toneladas de mantimentos foram doadas ao Banco de Alimentos da cidade de São Paulo – programa da prefeitura – pela Cooperativa Central dos Produtores Rurais e da Agricultura Familiar do Vale do Ribeira, a (Coopercentral-VR). 

Em mais uma ação da agricultura familiar e cooperativismo que evidencia que é possível diminuir os impactos e prejuízos causados pela covid-19 sobre população em situação de vulnerabilidade social, e que estão no quadro de insegurança alimentar, ao todo, 310 entidades assistenciais cadastradas no programa municipal poderão ser beneficiadas com as doações feitas. 

“Através de uma doação como essa, num gesto de solidariedade e amor ao próximo, nota-se claramente o agricultor familiar antenado e inserido no contexto de sociedade, não está alheio ao que acontece fora do seu âmbito”, disse o diretor financeiro da Coopercentral, Isnaldo Lima da Costa Junior.

Formada pela união de 12 cooperativas da região no sul do estado de São Paulo, a Coopercentral faz parte da associação da Unisol Brasil (Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários). Desde o início da pandemia, a entidade já doou 26 toneladas de alimentos para entidades assistenciais ligadas à prefeitura de São Paulo – a primeira dessas ações ocorreu no último dia 9 de abril, com outros 13 mil quilos de produtos oriundos da agricultura familiar entregues.

Raio-X do Banco de Alimentos

Integrante da Coordenadoria de Desenvolvimento Econômico da capital, Joselice Santos, que hoje atua na força-tarefa criada pelos funcionários públicos para suprir o número de profissionais afastados em função do coronavírus no Banco de Alimentos, conta que houve um aumento na demanda que começa pelas entidades que acolhem a população mais vulnerável. 

“As entidades também estão desesperadas. Uma entidade credenciada com a gente, que atendia 100 famílias, hoje ela está atendendo 150 a 180 famílias, porque têm muitas pessoas procurando por essas entidades”, explica. 

De acordo com Joselice, o programa de abastecimento e segurança alimentar e nutricional também recebe pedidos de outras instituições assistenciais, e agora estuda a ampliação do atendimento a pelo menos 100 novas entidades. “Porém, a gente precisa de novos doadores para contribuir”, invoca a funcionária.

“Por isso é importante ações como essas dos pequenos agricultores”, destaca Joselice. Entre os alimentos doados estão banana, mandioca, abóbora, abacate, limão, inhame, palmito pupunha, entre outros. Todos recolhidos a partir de “rede do bem”, organizada de forma voluntária pelos trabalhadores do campo

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Ao todo, 26 toneladas de produtos oriundos da agricultura familiar foram doados

A rede do bem 

“Nós começamos essa rede. Teve situações que a pessoa falou ‘eu tenho uma caixa de mandioca, uma caixa de abacate, ajuda?’ Ajuda. Quando você vai ver, já se formaram 600 caixas de produtos, e é em torno de 600 a 700 caixas que formam essas toneladas”, descreve a integrante do conselho fiscal da Coopercentral-VR Aline Marques. 

Aline, que também faz parte da Cooperativa dos Produtores Rurais e da Agricultura Familiar do município de Juquiá, no Vale do Ribeira (Coopafarga), revela que os valores da chamada economia solidária vêm sendo reforçados pelos pequenos agricultores que, no entanto, também enfrentam um momento “desesperador” de insegurança econômica. 

“Esses mesmos agricultores familiares estavam com a venda dos seus produtos garantida, eles tinham contratos ativos para o fornecimento de produtos para a alimentação escolar. Mas neste momento de calamidade as escolas não estão em atividade. E os nossos produtores estão com esses produtos parados e em insegurança econômica também. Só que existe um risco maior, que são as pessoas que estão em insegurança alimentar”, se solidariza.

Impactos da merenda escolar

A insegurança alimentar dos agricultores familiares poderia ter sido resolvida desde a implementação da Lei nº 13.987 de 2020, recém aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo presidente da República como Projeto de Lei (PL) 786/2020, que autoriza a distribuição de merenda escolar às famílias dos estudantes cujas aulas foram suspensas na rede pública devido à pandemia de coronavírus. 

Desde 2009 pelo menos, que a Lei 11.947 determina que 30% da alimentação escolar seja obrigatoriamente comprada da agricultura familiar. No entanto, em São Paulo, tanto a gestão municipal do prefeito Bruno Covas, como estadual do governador João Doria, ambos do PSDB, contestam na Justiça o PL aprovado em regime de urgência. 

Na prática, a postura dos gestores públicos vem impedindo não só a garantia de alimentos de qualidade na mesa das famílias nesse momento de crise, mas também a manutenção dos contratos e da renda dos pequenos agricultores, como avalia o presidente da Unisol Brasil, Leonardo Pinho. 

No lugar do projeto aprovado, Doria e Covas defendem, por exemplo, programas de atendimento limitado às famílias beneficiárias do Bolsa Família ou reconhecidas como em situação de extrema pobreza no Cadastro Único do governo federal, o que diminui o número de beneficiários, com impactos diretos nos contratos de compra e logística com as cooperativas.

“A Coopercentral, por exemplo, tinha todo um esquema de logística de distribuição nas escolas. O que a prefeitura devia fazer era cumprir essa lei, criando uma estratégia de logística para o alimento chegar na casa dessas famílias, como polos de distribuição, por exemplo, evitando aglomeração de pessoas, organizando horários e entregas diferenciadas. Mas não é isso que ela faz. A prefeitura de São Paulo hoje descumpre a lei nacional”, contesta Pinho, que é também vice-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos. 

Na quarta-feira (15), a Justiça de São Paulo, apesar de ter derrubado liminar que proibia Doria e Covas de excluir estudantes do recebimento emergencial do auxílio-alimentação, reconheceu que seria ilegal o uso do conceito de vulnerabilidade para determinar que famílias teriam direito ao benefício, na medida que a pandemia deve causar dificuldades econômicas de forma generalizada, mas principalmente sobre os mais pobres. 

Mas, mesmo com a crise imposta sobre os agricultores familiares, a integrante da Coopercentral garante que as ações assistenciais devem continuar. A expectativa é que o auxílio emergencial também seja ampliado para atender os trabalhadores do campo, como prevê o PL 873/2020, em discussão na Câmara. Segundo ela, a maioria dos agricultores e agricultoras são chefe de famílias, que estão preocupados com o sustento de seus filhos, porque aquilo que eles não produzem, eles têm de comprar.

“O cooperativismo e a economia solidária nos ensina a enxergar solidariedade e amor ao próximo naquele que está tendo problema. E conseguir enxergar que o problema do seu próximo pode ser maior que o seu”, atenua. 

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Cooperativismo e a agricultura familiar também contribuem para mitigar efeitos da crise, destacam trabalhadores rurais

Saída da crise pela economia solidária 

Os valores defendidos por Aline estruturam a economia solidária, na qual estão ancoradas as cooperativas, envolvendo também setores como metalurgia, alimentação e artesanato. Um novo modelo econômico, mais inclusivo e que pode fazer a diferença em momentos de crise como este, afirma Pinho. 

“Se a gente pudesse tirar uma lição dessa crise que estamos passando hoje é que a humanidade precisa se preocupar fundamentalmente com o que vale a pena. E o que vale a pena é o nosso planeta, o meio ambiente e os seres humanos. Para isso, temos defendido que precisamos sair dessa crise construindo uma economia solidária no Brasil, uma economia centrada no trabalhador e na trabalhadora, centrado no bem comum, na solidariedade”, explica. 

Como parte da campanha nacional “Vamos precisar de todo mundo”, articulada pelas frente Brasil Popular e Povo Sem Medo, a Unisol promove também outras iniciativas sociais para frear o processo de crise ocasionada pelo coronavírus. Foram criados um fundo emergencial de apoio às cooperativas e associações, um programa de reconversão produtiva das cooperativas e empreendimentos, projetos de geração de renda para as populações mais vulneráveis e um programa de apoio aos agricultores de orgânicos que comercializavam em feiras livres. 

Com isso, máscaras e outros eEquipamentos de proteção individual (EPIs) também podem ser produzidos por cooperativas e ajudar na demanda por cuidados aos profissionais da saúde e da sociedade em geral, se houver apoio do Estado.

Pinho ressalta que, na economia solidária, é fundamental que todos possam ter acesso à renda para também promover dignidade. O auxílio emergencial comprova isso. A outra demanda agora é que a renda básica também seja um projeto permanente e universal. 


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