São Paulo

Justiça liberta Fábio Hideki e Rafael Lusvargh após perícia descartar posse de explosivos

Juiz que havia usado termo 'esquerda caviar' para manter prisão preventiva de manifestantes volta atrás após resultado da perícia e coloca jovens em liberdade

Fábio Braga/Folhapress

Manifestantes ficaram 46 dias presos por representarem perigo à ordem pública, segundo juízes

São Paulo – O mesmo juiz que havia mantido a prisão preventiva dos ativistas Fábio Hideki Harano, 27 anos, e Rafael Marques Lusvargh, 29, acusando-os de fazer parte da “esquerda caviar”, voltou atrás e emitiu na tarde de hoje (7) decisão favorável à libertação dos dois manifestantes, detidos há 46 dias. Os alvarás de soltura já foram expedidos. Os jovens devem ganhar as ruas nas próximas horas.

“É forçoso concluir que a acusação restou de sobremaneira fragilizada, na medida em que ficou demonstrado que os acusados não portavam qualquer artefato explosivo ou incendiário”, escreveu o magistrado Marcelo Matias Pereira, da 10ª Vara Criminal de São Paulo, fazendo referência ao laudo divulgado na segunda-feira (4). Na decisão anterior, o mesmo juiz havia visto nos autos “depoimentos consistentes” que apontavam para a apreensão de explosivos.

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Como a RBA revelou, as análises do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) da Polícia Militar e do Instituto de Criminalística (IC) de São Paulo apontaram que os materiais supostamente encontrados com os jovens eram “inertes” e não representavam riscos à integridade física das pessoas. Os objetos apresentaram resultado negativo para todos os testes práticos e químicos a que foram submetidos.

Hideki era acusado pela polícia e pelo Ministério Público de portar um artefato explosivo de fabricação rudimentar no momento da prisão. Lusvargh estaria em posse de um frasco de iogurte com forte cheiro a gasolina. Ambos negam. Vídeos e testemunhos de pessoas que acompanharam a prisão e a revista dos manifestantes sugerem que os objetos teriam sido plantados pelos policiais.

“O porte de objetos com odor característico de qualquer substância inflamável não é crime e não pode ser confundido com artefato explosivo/incendiário”, argumentou o magistrado em sua decisão, cujo tom, mais técnico, difere radicalmente da sentença anterior. O argumento de que um frasco com “cheiro de gasolina” não poderia causar explosões vem sendo utilizado pela defesa desde o início do caso.

O despacho de Matias Pereira ainda desencorajou as intenções da polícia, que pretendia solicitar ao Gate e ao IC a realização de novas perícias nos materiais, conforme declarou o diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), Wagner Giudice, à Folha de S. Paulo. Para o juiz, é “absolutamente desnecessária a realização de qualquer complementação ao laudo realizado”.

Na nova decisão, o juiz também acatou outra das argumentações que a defesa sustenta desde o começo: a de que, mesmo se fossem considerados culpados durante julgamento, o que ainda não ocorreu, os ativistas dificilmente cumpririam pena em regime fechado. Portanto, não haveria motivos para que aguardassem o julgamento atrás das grades.

“As penas que lhes poderão ser impostas, em caso de condenação, quando muito, ultrapassarão o patamar de quatro anos, de modo que não se justifica a custódia cautelar”, escreveu Matias Pereira. “Em eventual condenação, se as penas forem fixadas nesse patamar tão elevado, poderão ser cumpridas em regime diverso do fechado, não havendo proporcionalidade na manutenção da prisão preventiva.”

Repercussão

O defensor público Bruno Shimizu, que representa Rafael Lusvargh, disse à RBA que ficou feliz com a decisão, mas salientou que, no caso de seu cliente, o laudo apenas veio comprovar uma informação “óbvia”, que era conhecida desde o momento da prisão. “O boletim de ocorrência já dizia que o suposto artefato encontrado com Rafael se tratava de uma embalagem vazia de iogurte. E o juiz já sabia disso”, pontua.

“É muito estranho que um magistrado deixe uma pessoa presa por 45 dias, esperando um laudo técnico, quando a informação já estava presente nos autos há tanto tempo”, continua Shimizu. “É uma decisão positiva, claro, mas vem muito tarde. Afinal, ninguém vai devolver ao jovem todo esse tempo em que ficou injustamente preso.”

O defensor analisa a mudança de postura do juiz como um reflexo da mudança de postura dos meios de comunicação tradicionais na cobertura do caso. “O laudo foi tomado pela grande imprensa como prova inequívoca. Realmente, é uma prova muito forte. Mas a grande imprensa não havia se atentado para o que havia no processo antes. Havia uma desconfiança em relação aos dois rapazes.”

Para Shimizu, a lógica da cobertura, até a divulgação do laudo, foi bastante parecida com a lógica da justiça criminal. “A pessoa é considerada culpada até que surja uma prova técnica que demonstre sua inocência”, explica, lembrando que arbitrariedades do tipo acontecem diariamente nos fóruns paulistas. “Mas, como as vítimas são pessoas pobres, não há pressão midiática e os casos caem no esquecimento.”

Shimizu acredita que, no processo dos manifestantes, a imprensa fez com que o Judiciário deixasse de lado as decisões ideológicas e resolvesse se debruçar sobre os autos. “Então, viram que os argumentos da defesa eram corretos”, sublinha. “Espero que isso sirva para demonstrar que a presunção de inocência é mais importante do que nunca para a consolidação de um estado democrático de verdade.”

Criminalização

O advogado de Fábio Hideki, Luiz Eduardo Greenhalgh, também se disse satisfeito com a decisão. “Eles estavam presos preventivamente muito com base no argumento de que portavam material explosivo. Quando veio o resultado do laudo, a acusação se enfraqueceu muito, esboroou-se. Daí o juiz não teve alternativa se não soltar”, avaliou, em entrevista à RBA.

Greenhalgh também comentou o fato de que o mesmo juiz que havia mantido a prisão dos jovens, há menos de uma semana, tenha mudado de ideia. “Ele havia indeferido o pedido de liberdade com um despacho absolutamente ideológico, distante dos autos e dos acusados, e o fez precipitadamente, porque poderia ao menos ter esperado o laudo. Quando veio o laudo, ficou sem poder sustentar seu primeiro despacho.”

O ouvidor das polícias do estado de São Paulo, Julio César Fernandes Neves, avalia que a decisão é uma mostra de que os indícios contra os jovens eram frágeis. “Infelizmente, a polícia deixou claro que errou”, disse à RBA. “E errou em todo o processo: em relação à prisão, ao que ocorreu na manifestação, à acusação sobre explosivos, em tudo.”

Fernandes Neves acredita que o magistrado acabou sendo constrangido pela decisão anterior, em que menciona a “esquerda caviar”. “Só foi a imprensa começar a ver a questão com outros olhos que o juiz teve que liberar os meninos”, apontou, comemorando a decisão. “Não se pode criminalizar os movimentos sociais do jeito que está acontecendo. Isso é fundamental.”

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