Ao deus-dará

Exército diz não saber quantas armas existem em cada cidade nas mãos de colecionadores

Falta de informação mostra a “baixíssima capacidade do Exército de fazer o controle das armas de forma eficiente”, afirma especialista em segurança pública. No país, arsenal dos caçadores, atiradores esportivos e colecionadores já passa de um milhão de unidades

Tânia Rêgo/ABr
Tânia Rêgo/ABr
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São Paulo – O Exército não sabe quantas armas existem em cada cidade brasileira nas mãos de caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (CACs). A afirmação foi feita à Controladoria-Geral da União (CGU) durante análise do órgão sobre um pedido de Lei de Acesso à Informação feito pelo portal UOL. A reportagem buscava saber o tamanho do arsenal em cada município do país. Mas o Exército declarou não ter essa análise, o que foi aceito pela CGU. 

Em regra, para solicitar o registro de CAC, o interessado é obrigado a fornecer seus dados pessoais. Entre os quais, a unidade da federação, município e até latitude e longitude de sua residência. Ao UOL, a força armada justificou que essas informações são registradas, mas não estão integradas na base de dados de armas. Por conta disso, para saber o tamanho do arsenal em cada cidade, seria necessário consultar os registros um a um. O que exigiria o trabalho de 12 militares durante 180 dias úteis. 

“Isso acarretaria considerável prejuízo no cumprimento de outras atividades, como regulamentação, fiscalização e autorização referentes ao trabalho com Produtos Controlados pelo Exército”, afirmou o órgão à reportagem. 

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Descontrole

Especialistas em segurança pública veem, contudo, uma contradição. A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, destacou ao veículo que a análise de dados é uma das principais ferramentas de fiscalização que permite detectar, por exemplo, uma alta atípica no número de armas em uma determinada cidade para assim determinar investigações. 

“Isso mostra a baixíssima capacidade do Exército de fazer o controle das armas de forma eficiente. Ter dados por município é muito importante para planejar ações de fiscalização mais efetivas, a partir de inteligência. Com o aumento significativo de armas em circulação, não saber o número por município se torna ainda mais grave”, alertou. 

Em todo o país, o arsenal de CACs já passa de um milhão de armas. O total é quatro vezes maior do que a quantidade de armas de fogo em circulação até 2019. O aumento decorre dos decretos assinados pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) que flexibilizaram o acesso por civis. O especialista em uso de dados para construção de políticas públicas Ricardo Ceneviva, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), disse também estranhar a falta de embasamento técnico do Exército para integrar as bases de dados de armas. 

Apagão de dados

“Isso se resolve com facilidade. Acredito que o Exército tenha técnicos competentes para lidar com isso. Se é tão capacitado para opinar sobre as urnas eletrônicas, como não tem capacidade de fazer gestão de um banco de dados?”, contestou, acrescentando, porém, que “o problema não é técnico, mas político”. De acordo com Ceneviva, falta uma legislação clara para obrigar os órgãos de segurança pública a prestar contas sobres essas informações.

UOL também buscou saber o tamanho do arsenal por município pela Polícia Federal, que é responsável por conceder posse e porte para civis. O número de armas em circulação nesse caso também cresceu no governo Bolsonaro. São 186 mil, em 2021, o dobro de 2019. Ao contrário do Exército, a PF afirmou que consegue fazer o levantamento para fins de fiscalização. Mas negou a divulgação de dados, alegando risco à segurança pública. 

Com isso, o resultado é um apagão de dados de armas por município. Os especialistas advertem que, sem essas informações, estudos sobre o impacto do aumento da circulação de armas nas cidades no números de roubos, vítimas de arma de fogo e violência contra a mulher, por exemplo, ficam comprometidos. “O primeiro objetivo de ter um bom banco de dados é produzir informações de qualidade que permitam tomar decisões mais informadas, identificar e investigar anomalias”, observou o professor da Uerj.

Em abril, o Exército também admitiu para o Instituto Sou da Paz não saber especificar quais são as armas que estão nas mãos de caçadores, atiradores esportivos e colecionadores.

STF analisa decretos 

Em meio ao apagão de dados e ao aumento da violência armada neste período eleitoral, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu marcar para esta sexta-feira (16) a análise dos decretos editados por Bolsonaro que facilitaram a compra de armas de fogo e munições, além da posse de armamentos no país. No último dia 5, o ministro do STF Edson Fachin decidiu, de forma individual, restringir os efeitos dos decretos. 

O magistrado alegou que “o risco de violência política torna de extrema excepcional urgência a necessidade de se conceder o provimento cautelar”. O caso vinha sendo analisado desde o ano passado com base em ações apresentadas ao Supremo pelo PSB e o PT contra o aumento das possibilidades de aquisição de armas de fogo no país. Fachin, que assumiu a relatoria do processo, já em março de 2021, declarou inconstitucionais os decretos de Bolsonaro. 

Em sua decisão, o ministro lembrou dos estudos nacionais e internacionais que mostram que o aumento da circulação de armas na sociedade está diretamente relacionado ao aumento da criminalidade e da violência. O voto do relator foi acompanhado pelos ministros Rosa Weber e Alexandre de Moraes. Mas, seis meses depois, o ministro Nunes Marques, um dos indicados pelo presidente para a Corte, pediu vistas, mais tempo para analisar os casos, e suspendeu os julgamentos. 

Passado mais de um ano e diante dos aumento da violência política armada, Fachin decidiu conceder a cautelar restringido os decretos. A partir de amanhã, o caso volta a ser analisado no plenário virtual, onde os ministros deverão votar para manter ou não a decisão do relator. 

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