Poder das ideias

Série Round 6 é mais um sucesso do ‘soft power’ sul-coreano

Seriado, que se tornou o maior lançamento da história da Netflix, se soma à lista de outros fenômenos culturais exportados com apoio do Estado, como o K-Pop, e mostra como a arte pode se tornar um instrumento geopolítico e diplomático, além de gerar divisas

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"O objetivo principal é tornar as marcas nacionais e associa-las à disseminação da cultura e da arte sul-coreana", explica economista

São Paulo – Sensação mundial, a série sul-coreana Round 6 vem chamando atenção de todo o mundo nas últimas semanas não só pelo enredo, mas também pelos números. Nesta terça-feira (12), a plataforma Netflix divulgou que a produção já é o maior lançamento da história do serviço de streaming, assistida por 111 milhões de pessoas desde a sua estreia, em 17 de setembro. Mas o verdadeiro sucesso do seriado está, na verdade, na estratégia da Coreia do Sul de disseminar sua cultura pelo mundo. 

A obra, cujo título original é Squid Game, faz parte de uma lista de outras produções culturais sul-coreanas, também populares, que se inserem dentro de uma estratégia de soft power do governo de Seul. Um instrumento geopolítico e diplomático que projeta a imagem do país no exterior e dissemina sua cultura, garantido um grande retorno financeiro.

Pesquisador do desenvolvimento econômico do país asiático, o economista e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Uallace Moreira  destaca, em entrevista a Glauco Faria, do Jornal Brasil Atual, que o Hallyu – onda coreana – tem sido fundamental para o governo do país asiático, que despertou para a importância da indústria cultural em 1994. À época, o então presidente Kim Young-Sam recebeu um relatório que mostrava que o volume de receita das bilheteiras do filme Jurassic Park era equivalente à exportação de mais de um milhão e meio automóveis da Hyundai. “Eles perceberam ali que promover a cultura seria uma estratégia de disseminar ou estimular a atividade econômica, gerar emprego e renda”, descreve. 

‘Coreia way of life’

O ponto principal, conforme aponta o professor, estava, contudo, em dinamizar as marcas sul-coreanas a partir da produção cultural. O que contou com investimentos do Estado nas diversas formas de arte, do audiovisual à música, e também com o suporte de empresas nacionais associadas aos projetos de desenvolvimento do país. “Isso faz com que pessoas de outros países tenham o mesmo interesse pelo consumo dos bens sul-coreanos como os sul-coreanos têm. Essa é a estratégia e o soft power da Coreia do Sul”, pontua.

“Por muito tempo os Estados Unidos usaram sua cultura para disseminar os seus produtos e seu estilo de vida no mundo. E é o que eles fazem agora. Existia o American way of life, um estilo de vida americano e há o Coreia way of life, como forma de influenciar o mundo com o comportamento e o estilo de vida do país para disseminar as suas marcas”, completa. 

O desempenho da indústria cultural tem refletido nas cifras arrecadadas. Apenas o BTS, um dos conjuntos do gênero musical K-Pop mais famoso, obteve, em 2019, US$ 3,6 bilhões. Personalidades da arte sul-coreana têm inclusive lugar na mesa diplomática. A convite do atual presidente do país Moon Jae-in, nomes como Red Velvet e Baek Ji-young se apresentaram em um show em Pyongyang, capital da Coreia do Norte, em abril de 2018, durante uma reunião entre Moon e o líder do país Kim Jong-un. O gesto trouxe uma avaliação positiva ao presidente sul-coreano, que se mostra defensor da retomada das relações com o país, dividido no contexto da Guerra Fria. 

Estado indutor

O suporte estatal, de acordo com Moreira, vem ganhando força desde 1998, com o governo coordenando os projetos de desenvolvimento, utilizando a cultura e associando a ela as grandes empresas nacionais. Há, conforme aponta, uma combinação de investimentos, evidenciada no êxito do filme Parasita, do diretor Bong Joon Ho. A obra, em 2020, foi um grandes destaques no Oscar e se tornou a primeira produção em língua estrangeira a ganhar a estatueta de melhor filme. 

Ele traça uma comparação da condução do governo do país asiático com o que ocorre hoje no Brasil. “O Estado é o indutor desse processo de desenvolvimento e se torna fundamental para isso. E esta estratégia tem resultado em crescimento econômico, geração de empregos e fortalecimento de empresas nacionais. Isso é extremamente relevante e importante para nós (brasileiros), diante da nossa conjuntura. Porque enquanto se destroem políticas públicas de estímulo à cultura e ao mesmo tempo se promovem políticas públicas para destruir empresas nacionais, estão tornando o país mais periférico ainda”, acrescenta.

Crítica ao capitalismo

A crítica ao neoliberalismo também não deixa de ser refletida nas produções culturais sul-coreanas. Em Round 6, pessoas endividadas aceitam participar de uma competição em busca de um prêmio milionário, porém, a eliminação custa a própria vida. A obra aborda diversas problemáticas sociais que remetem aos efeitos do amplo processo de reformas neoliberais adotadas na década de 1990 pela Coreia do Sul. A reforma trabalhista, que precarizou as condições de trabalho, faz parte do enredo dos personagens falidos, que tentam sobreviver ao desemprego e à queda na renda. 

O falho sistema previdenciário, que não assiste a uma parcela de idosos que caem na vulnerabilidade, também aparece com personagens mais velhos que ainda precisam se submeter a péssimas condições de trabalho, sem acesso a uma aposentadoria. Hoje uma economia pujante, a Coreia do Sul vem revertendo o processo de desmonte anterior apostando no desenvolvimento do país e fortalecendo direitos sociais. O atual presidente foi eleito principalmente pelo discurso de retomada dos direitos trabalhistas.

“A Coreia do Sul durante o governo Kim Young-Sam, entre 1993 e 1998, adotou políticas neoliberais muito parecidas com as nossas, que estamos implementando. A diferença é que a Coreia entendeu que isso é um erro e no nosso caso (do Brasil), não. O seriado reflete isso”, conclui Uallace Moreira. 

Confira a entrevista 

Redação: Clara Assunção