Toma posse hoje

Sem gravata e feminista. Governo Boric no Chile vai ‘acalmar os mercados’ ou mudar a lógica política?

O mais jovem presidente de seu país, com apenas 36 anos, Boric cita “tradição socialista libertária chilena” e fala em reformas estruturais contra a desigualdade

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
Na comemoração da vitória em dezembro e quando líder estudantil: ecos do repúdio à ditadura e um progressista no Palácio de la Moneda

São Paulo – Gabriel Boric Font tinha apenas 2 anos quando o Chile disse “no!” à ditadura, em plebiscito de outubro de 1988, quando Augusto Pinochet pretendia permanecer oito anos no poder. Em 2004, o jovem Boric, 18 anos, saiu de sua Punta Arenas, na chamada Antártica Chilena, e percorreu os 3 mil quilômetros até a capital, Santiago, para estudar Direito. Já militava no movimento estudantil, de onde saiu para o mundo político. Nesta sexta-feira (11), aos 36 anos, tomará posse na presidência de seu país, em Valparaíso (onde fica o Congresso) e Santiago (sede do governo). Será o sexto após o retorno da democracia, considerando que houve duas reeleições.

A plataforma Modern Democracy apresenta Boric como representante da liderança de uma nova geração, com movimentos estudantis que passaram a ocupar as ruas ainda sob a ditadura. “Os protestos estudantis chilenos, que defendiam a democracia universitária durante esse período, foram o prelúdio de mudanças políticas muito mais profundas que incluíram a formação de novos partidos e coalizões de oposição, a promoção de agendas que incluíam maior abertura e democracia e, acima de tudo, a geração de uma consciência social e política muito maior por parte de estudantes e jovens profissionais (…) Assim, Gabriel Boric fez parte da chamada “generación sin miedo”.

Bem-estar da maioria

Já o jornalista e pesquisador Bernardo Gutiérrez González cita as manifestações de 2019 no Chile, contra o sistema econômico, que tinha entre seus slogans o lema “O neoliberalismo nasce e morre no Chile”. Assim, afirma, o novo presidente pode representar um postura diferente em relação ao poder financeiro. “O grande desafio de Gabriel Boric não é apenas acalmar os mercados, como aponta a mídia, mas desmercantilizar a vida e possibilitar o bem-estar da maioria.”

Boric escolheu Mario Marcel, ex-presidente do Banco Central, para o Ministério da Fazenda. Seria uma escolha para “acalmar os mercados”? Não por coincidência, entre os nomes anunciados para compor o governo, foi o que mais críticas sofreu nas redes sociais. Em entrevista ao jornal El País, Marcel declarou que o programa de governo “contempla uma reforma tributária bastante ambiciosa”. Na sempre polêmica área da previdência, o futuro ministro disse que o objetivo é construir um sistema misto, não apenas baseado na capitalização. Ele fala em um “programa de recuperação inclusiva, que assegure que ninguém fique para trás no pós pandemia”.

Desigualdade: desafio em comum

O jornal lembrou de um tema bastante familiar ao Brasil: a concentração de renda. Os 1% mais ricos do Chile detêm aproximadamente 49,6% da riqueza. “A desigualdade se dá não apenas porque os acessos são desiguais, mas porque a proteção social é pequena”, afirma, ao defender maior cobertura no sistema de saúde e mais segurança a aposentados e desempregados.

Depois de ficar um pouco atrás na primeira rodada, Gabriel Boric venceu o segundo turno, em 19 de dezembro, com 4.621.231 votos (55,87% dos válidos). Seu adversário, José Antonio Kast (extrema direita), teve 3.650.662 (44,13%). Partidos de esquerda conseguiram pequena maioria na Câmara, o que poderá ser importante no processo de elaboração de uma nova Constituição, em andamento.

Mulheres no governo

Boric já declarou, mais de uma vez, que seu governo será feminista. E insistiu que os homes levem a sério essa mudança cultura. Dos 24 ministros anunciados, 14 são mulheres. Mais recentemente, chamou a atenção a nomeação da tenente-coronel Cecilia Navarro Luke para ajudante de ordens das Forças Armadas, primeira mulher nessa função.

O Ministério do Interior também terá uma mulher pela primeira vez (Izkia Siches). A importante Secretaria de Governo ficará sob responsabilidade de Camila Vallejo, do Partido Comunista, egressa do movimento estudantil, assim como o presidente que toma posse hoje. Ambas bem jovens, outra característica do novo governo: Izkia tem 36, como Boric, e Camila completará 34 no mês que vem.

Juventude e história

“Representamos a força de uma época”, disse o presidente à BBC News Mundo (serviço em espanhol da emissora). “Acredito que representamos uma energia geracional de transformação que aprendeu ao longo do caminho a valorizar a história que nos constitui. Representamos o ar puro, a juventude, a novidade, mas com consciência da cadeia histórica dos processos. Também representamos (a ideia de) que o status quo, ou o conservadorismo, é a pior coisa que pode acontecer ao Chile neste momento.” Ele lembra que a ex-presidenta Michelle Bachelet (hoje alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos) também buscou a paridade, mas sofreu pressão das “forças do conservadorismo”.

Ele fala ainda em “novo pacto social” e em uma sociedade mais solidária”, na qual o Estado também seja capaz de garantir os direitos sociais de forma universal”. O que requer “reformas estruturais”, observou. Nada se faz da noite para o dia, admite Boric, “mas também vamos ter uma virada em relação à lógica política neoliberal de cada um por si na sociedade”.

Expectativa com Lula

“Venho da tradição socialista libertária chilena”, afirma o novo mandatário, em definição que pode remeter ao ex-presidente Salvador Allende, deposto pelo golpe de 1973. “Esse é o meu espaço ideológico de referência. Sou democrata e acredito que a democracia tem que mudar e se adaptar, e não se petrificar. Acredito que a democracia no Chile carece de maior densidade”, disse o líder chileno.

Neste sentido, Boric aponta ainda um possível “eixo” de atuação na América do Sul. “Espero trabalhar ao lado de Luis Arce, na Bolívia; de Lula, se ele ganhar as eleições no Brasil; de Gustavo Petro, cuja experiência se consolida na Colômbia.”

A propósito, o atual presidente da República não ira à posse. O Brasil será representado pelo vice, Hamilton Mourão, que tem encontros previstos com Boric e com o ainda presidente, Sebastián Piñera, en La Moneda, o palácio presidencial.

O que se sabe, com um pouco mais de certeza, é que os chilenos verão um presidente avesso ao uso de gravatas. “Um (sentido) é estético e um tanto absurdo, mas também percebi que havia no Congresso um espírito de disciplina e homogeneização por parte de uma elite muito fechada e muito parecida entre si – e por isso me mandaram para a comissão de ética, por não usar gravata. Agora, isso está totalmente naturalizado, e é totalmente normal andar sem gravata no Congresso”, comentou o ex-deputado. Até a cantora norte-americana Joan Baez, quando eles se conheceram, tocou no assunto, por ouvir uma anedota a respeito.