Candidato à reeleição, Rafael Correa terá adversários à direita e à esquerda

Coordenadora Plurinacional integra desde partidos maoistas e movimentos sociais até indígenas e dissidentes do governo: propõem transformar o país fazendo realidade a Constituição de 2008

Ex-correligionários, Rafael Correa e Gustavo Larrea (dir.) romperam aliança e podem ser adversários nas eleições de fevereiro (Foto: Presidência do Equador)

Quito – O Equador vai às urnas em fevereiro de 2013 para eleger um novo presidente da república. O atual governante, Rafael Correa, é candidato à reeleição – e tudo indica que será escolhido para liderar o país pelos próximos quatro anos. Ainda assim, terá uma dura batalha pela frente.

Além dos partidos conservadores e dos grandes meios de comunicação, seus tradicionais opositores, a campanha do presidente será atacada também pela esquerda: a maioria dos movimentos políticos e sociais que antes lhe apoiava trabalhará pela primeira vez contra seu nome. E estará unida.

A Coordenadora Plurinacional pela Unidade das Esquerdas nasceu no ano passado para dizer um uníssono ‘não’ ao referendo convocado pelo governo em maio de 2011 – o terceiro em cinco anos. Na ocasião, os equatorianos foram chamados a responder dez perguntas sobre segurança, meio ambiente, sistema bancário, meios de comunicação e justiça. Embora com margem estreita, o ‘sim’ venceu em todos os quesitos.

O respaldo do povo deu legitimidade ao Executivo para proibir touradas e rinhas de galo, modificar as regras da prisão preventiva, impedir que bancos tenham ações em empresas de mídia, pressionar o congresso para aprovar uma lei de comunicação, tornar ilegais os jogos de azar e penalizar o patrão que não afilie seus empregados na seguridade social.

Entretanto, o que mais preocupava os movimentos sociais – e que continua incomodando até agora – é a intromissão do governo no chamado Conselho da Judicatura, órgão que no Brasil se assemelha ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sua função é fiscalizar e disciplinar o exercício do poder judiciário equatoriano. Por isso, deveria ser autônomo. Mas o beneplácito popular possibilitou a Rafael Correa nomear seus novos integrantes. Para tanto, o referendo propunha pequenas mudanças na Constituição, que havia sido aprovada apenas três anos atrás.

“Avaliamos que o presidente estava se afastando de alguns princípios constitucionais muito importantes, como a independência dos poderes do Estado, e o tempo nos deu toda a razão”, explica Alberto Acosta. Ex-ministro de Minas e Energia, ex-presidente da Assembleia Constituinte e ex-correligionário de Rafael Correa, Alberto Acosta é economista e atualmente trabalha em Quito como professor na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Também lidera o Movimento Montecristi Vive, cujos integrantes decidiram elegê-lo pré-candidato à presidência pela Coordenadora das Esquerdas.

Coalizão

Não é o único. Até agora, pelo menos mais cinco pessoas estão dispostas a encabeçar a Coordenadora nas próximas eleições. A pluralidade de nomes e origens políticas indica a diversidade do grupo. Fazem parte do fronte esquerdista desde o Movimento Popular Democrático (MPD), um partido com inspirações maoistas, até o Pachakutik, braço político do movimento indígena, a organização social mais importante do país. Dissidentes do Partido Socialista e da sigla de Rafael Correa, Alianza País, também participam da Coordenadora.

Alberto Acosta é um deles. Seu novo movimento se define pelo apego à Constituição de 2008, debatida e escrita na cidade de Montecristi. Gustavo Larrea é mais um pré-candidato que outrora ocupou cargos de destaque na administração correista. Foi ministro de Governo e Segurança Interna, mas abandonou o barco em 2009 para engrossar o caldo de outra corrente política, Participação, que agora faz parte da Coordenadora de Esquerdas.

“Estive ao lado de Rafael Correa porque ele concordou em conduzir um processo constituinte e promover uma transição econômica que reduzisse nossa dependência do petróleo e passasse a uma economia mais produtiva”, explica Gustavo Larrea. “Mas retirei meu apoio depois que o governo rompeu o diálogo com os movimentos sociais e começou a criminalizar as manifestações públicas, acusando militantes políticos de terrorismo e sabotagem. Também porque o presidente decidiu insistir no modelo extrativista.”

Conhecer as críticas que a Coordenadora nutre em relação ao governo é a maneira mais fácil de entender suas propostas para o país. Não porque o grupo se defina apenas pela negação ao correismo, mas porque pretende fazer tudo o que Rafael Correa prometeu durante a campanha – e deixou de cumprir. Há membros da Coordenadora das Esquerdas que, em ritmo de campanha, dirão que o atual presidente foi o pior dos últimos tempos. Alberto Acosta é mais ponderado.

“Se olho para trás e vejo as coisas que o governo fez, sou muito franco em dizer que é o melhor governo que tivemos recentemente”, admite. “Mas, se olho para a frente, verei que estamos retrocedendo. Não é o governo que queríamos. Rafael Correa não está apenas contrariando seu projeto inicial: está tomando caminhos contrários ao que propôs.”

Retomada

Alberto Acosta e Gustavo Larrea conhecem bastante bem as ideias, propostas e promessas endossadas por Rafael Correa durante as eleições de 2006. É como se fossem suas próprias – e, de fato, são. Ambos formaram parte do núcleo duro que conduziu a formação do partido Alianza País e traçou a ideologia da chamada Revolução Cidadã, que é como o presidente apelida sua administração. Não à toa, Acosta e Larrea se transformaram em ministros quando o projeto venceu as eleições, e não surpreende que tenham deixado o governo ao perceberem que Rafael Correa se desviava das promessas de campanha.

“Em 2009, apenas dois anos depois da eleição, começamos a perceber que o governo não faria as transformações que pedíamos, pois aprovou uma lei de mineração contrária aos princípios constitucionais sem qualquer debate prévio com a população”, revela Acosta. Gustavo Larrea adiciona outros fatores à equação. Por exemplo, o gasto excessivo de dinheiro público com políticas assistencialistas, como subsídios e bônus de desenvolvimento humano (semelhante ao Bolsa Família, no Brasil). “Essas coisas vão se configurando em discrepâncias políticas severas, inclusive no que diz respeito ao que entendemos por democracia”, argumenta.

Ao costurar um acordo entre suas várias vertentes para participar conjuntamente das eleições, a esquerda equatoriana assume uma posição inédita em relação ao governo. Entre 2006 e 2008, movimentos e organizações sociais cerravam filas com Rafael Correa. Não foi à toa que, neste período, o presidente venceu as eleições, acabando com a hegemonia da direita neoliberal, e aprovou uma nova Constituição.

Em janeiro de 2009, porém, começou a desobedecê-la, e a esquerda deixou de oferecer seu apoio incondicional. Mas ainda não fazia oposição. Quando se reelegeu pela primeira vez, em abril, os movimentos não foram nem contrários nem favoráveis a seu nome – no máximo, lhe ofereceram “apoio crítico”. O presidente venceu a disputa e durante o mandato a distância com a esquerda só fez aumentar. Agora, a oposição é aberta. E a razão, simples.

“Queremos transformar o Equador”, resume Alberto Acosta. E o pré-candidato só vê uma maneira de mudar o país: mudando o sistema capitalista equatoriano. “É difícil, já sei, mas temos que começar.” Por isso, tem na ponta da língua uma série de declarações proferidas por Rafael Correa para comprovar a tese de que o presidente não pretende modificar as estruturas do sistema político e econômico equatoriano.

“Correa não acredita na reforma agrária nem na distribuição das fontes de água aos camponeses. O presidente já disse e repetiu: não queremos mudar o modelo de acumulação no Equador”, enumera. “A ideia do governo é que a situação está menos pior para os pobres, mas os ricos jamais ganharam tanto como agora. Prova disso é que toda a economia está nas mãos de monopólios ou oligopólios.”

Constitucionalismo

Para avançar com as mudanças reais que quer impingir ao país, a Coordenadora das Esquerdas propõe como ponto de partida abraçar a Constituição. Na realidade, as declarações de apreço ao texto constitucional são mais do que a base programática do grupo: é a corrente que sustenta a unidade de movimentos e organizações historicamente afeitas ao sectarismo. “A Carta não é a verdade revelada, mas sim o ponto de partida para a revolução que queremos”, diz Acosta.

Em 2008, houve júbilo entre os movimentos sociais quando o povo aprovou em referendo uma Constituição que reconhecia a plurinacionalidade, os direitos da natureza e o sumak kawsay – ou bom-viver. Mas ostentar uma das constituições mais bonitas da América Latina não foi suficiente para que o governo mudasse os rumos do país: a administração argumentou que não teria condições de fazê-la cumprir e insistiu no petróleo, na mineração, nos subsídios e na intolerância contra as manifestações sociais para brindar ao país o desenvolvimento que tanto deseja – e precisa – para combater a pobreza.

“Minha maior decepção é que o governo sequer tenha tentado seguir os princípios constitucionais”, lamenta Acosta. “Nós ao menos tentaremos. Iremos contra todos os interesses que seja necessário para implementar a Constituição, mas com inteligência. Não posso dizer que enfrentaremos todas as forças contrarrevolucionárias ao mesmo tempo, porque pode ser que não tenhamos tanta força política para mudar tudo de uma vez. Mas caminharemos nesta direção.”

Se governar em parceria com os movimentos sociais vou se revelando um disparate para Rafael Correa, para a Coordenadora das Esquerdas é uma solução. “Enquanto fiz parte da administração nacional, mantive diálogo permanente com as organizações populares, realizei consultas e promovi a participação”, conta Gustavo Larrea, lembrando seus tempos como titular do Ministério de Governo. “Nossa proposta é conduzir um governo coletivo onde podemos processar nossas diferenças e construir acordos. Não acreditamos em caudilhos.”

Eleições

Após definir todos os seus pré-candidatos, a Coordenadora das Esquerdas pretende percorrer o Equador e consultar as bases (camponeses, estudantes, professores, indígenas, mulheres, funcionários públicos) antes de escolher o nome que representará os movimentos sociais e a ‘verdadeira’ Revolução Cidadã nas eleições de fevereiro. Não serão primárias tradicionais: as organizações pretendem sentir junto à população qual é o candidato com mais apelo e só então enviá-lo, com respaldo de todos, para a batalha nas urnas.

Alberto Acosta diz que o objetivo da Coordenadora das Esquerdas não é apenas vencer Rafael Correa. “O que realmente importa é construir uma base programática sólida, promover a unidade dos movimentos de esquerda, respaldar as lutas de resistência pacífica que se desenvolvem em todo o país e debater uma agenda política que seja efetivamente antissistema”, pondera. “Queremos pensar numa esquerda que não precise da direita nem para governar nem para nada, uma esquerda que possa realmente mudar o país.”

Mas ninguém esconde o desejo pela vitória eleitoral – e Gustavo Larrea acredita que é perfeitamente possível juntar os votos necessários para arrebatar a presidência. “Em 2006, quando lançamos a candidatura de Rafael Correa, contávamos com apenas 4% dos votos”, recorda. “Acreditamos que é possível vencer a disputa se tivermos um frente social amplo, formado por forças progressistas capazes de redirecionar os rumos do país e aprofundar a democracia, os direitos humanos e a inclusão social.”