Diplomacia

Bolivianos compartilham ‘indignação’ por constrangimento a Evo Morales na Europa

Analistas coincidem em condenar bloqueio aéreo ao líder aimará e dizem que atitude coloca em risco normas internacionais; PT e CUT se adiantam a Dilma e criticam países europeus

Agência EFE

Bolivianos protestaram em frente à embaixada da França em La Paz com bloqueio aéreo imposto a Morales

São Paulo – Mais do que abrir uma nova arenga diplomática entre Estados Unidos e América Latina, os países europeus que fecharam seus espaços aéreos à passagem do avião presidencial boliviano na madrugada de hoje (3) conseguiram fabricar um breve momento de trégua na conturbada relação entre a oposição e o governo de Evo Morales. “Nos sentimos também hostilizados por esta atitude”, diz o analista Carlos Cordero, professor de Ciência Política na Universidad Mayor Andrés Bello, em La Paz. “Independente das críticas que temos ao governo, a grande maioria do povo está expressando sua solidariedade ao presidente e seu profundo mal-estar com toda esta situação.”

Em conversa por telefone, Cordero não esconde suas divergências políticas à administração do Movimento ao Socialismo (MAS), partido liderado por Evo Morales, à frente do Estado boliviano desde 2006. Acredita que o pouso forçado em Viena, na Áustria, é uma consequência da política internacional praticada pelo presidente aimará. “Existe um distanciamento muito claro entre a Bolívia e a União Europeia graças às frequentes declarações anti-imperialistas do presidente”, argumenta. “Evo tem se alinhado com Cuba, Irã e Venezuela, e essa aproximação ideológica acaba criando esse tipo de resposta. Tem muito a ver com as ‘novas amizades’ do presidente.”

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Apesar disso, o analista considera que houve excessos, e que a Bolívia deveria buscar seus direitos nas instâncias internacionais. E acredita que os países da região deveriam condenar publicamente a atitude de França, Itália, Espanha e Portugal. “Exigir respeito ao presidente boliviano é defender a dignidade e institucionalidade de todos os presidentes da América Latina”, argumenta. “Embora existam países muito influentes na economia, e por isso muito poderosos no cenário internacional, existe um princípio diplomático que estabelece igualdade política entre todas as nações do mundo. Defender Evo é defender o continente.”

A opinião de Carlos Cordero ecoa as declarações dos líderes latino-americanos que condenaram o “sequestro” de Evo Morales na Áustria. Os governos de Equador, Argentina, Uruguai e Venezuela foram ágeis em criticar os países europeus. Em Buenos Aires, Cristina Fernández de Kirchner classificou o episódio como uma “humilhação ao continente sul-americano” e um “vestígio vergonhoso de colonialismo”. O presidente equatoriano, Rafael Correa, pediu a convocação de uma reunião de emergência da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) para discutir a situação e emitir uma posição conjunta da região. O encontro ocorrerá amanhã (4) em Cochabamba, na Bolívia.

A presidenta Dilma Rousseff foi a última em se pronunciar – e o fez por meio de uma nota, repudiando o “constrangimento” imposto ao líder aimará. “O constrangimento ao presidente Evo Morales atinge não só a Bolívia, mas toda a América Latina”, escreveu. “Compromete o diálogo entre os dois continentes e possíveis negociações entre eles. Exige pronta explicação e correspondentes escusas por parte dos países envolvidos nesta provocação.” A presidenta brasileira, porém, não vai a Cochabamba oferecer seu apoio a Evo Morales – tampouco foi cumprimentá-lo em Fortaleza, onde faria uma escala de voo na noite de hoje. Na cúpula da Unasul, o país será representado pelo chanceler interino, Eduardo dos Santos, uma vez que o ministro Antonio Patriota está na Holanda. Também o assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, vai ao encontro.

Especialista boliviano em relações internacionais, Hugo Molidiz também fala da “unidade nacional” em torno da figura presidencial após seu avião ter sido retido por 13 horas na Áustria. “Isso provocou uma reação totalmente compreensível de indignação na maior parte do povo boliviano, independente da posição política de cada um em relação ao governo”, avalia. “Alguns grupos muito reduzidos da oposição entenderam o pouso forçado como resultado de uma política equivocada da Bolívia em relação aos Estados Unidos, mas a maior parte dos bolivianos reagiu com indignação. Não é uma afronta apenas ao presidente ou a seu partido, mas ao Estado boliviano.”

Segundo a Agência Efe, indígenas partidários do presidente queimaram hoje as bandeiras da França e da União Europeia em La Paz às portas da embaixada francesa, que também foi apedrejada e bloqueada com pedras. “França fora da Bolívia”, “França hipócrita colonialista, fora da Bolívia” e “França racista, hipócrita e fascista”, “Bolívia se respeita” e “Propriedade dos Ponchos Vermelhos” eram alguns dos cartazes que colaram no exterior do edifício.

As razões que motivaram França, Itália, Espanha e Portugal a restringirem seus espaços aéreos ao avião presidencial boliviano foi a suspeita de que Evo Morales trazia em sua bagagem o ex-espião norte-americano Edward Snowden. Refugiado no aeroporto de Moscou, na Rússia, Snowden é requisitado pela justiça dos Estados Unidos por ter revelado ao mundo um esquema de vigilância em massa patrocinado por Washington sobre e-mails, telefones celulares e outros meios de comunicação entre cidadãos do planeta. As denúncias de Snowden foram publicadas pelo jornal britânico The Guardian há dois meses. Desde então, o jovem é caçado pelas autoridades ianques.

Ontem, o WikiLeaks, que está ajudando Snowden, protocolou pedido de asilo para o ex-espião em 20 países. Bolívia e Brasil estão entre eles. Evo Morales ainda não se pronunciou sobre a requisição de Snowden – e ainda não demonstrou interesse em acolhê-lo, como tem feito o Equador. Ainda assim, começaram a circular boatos de que o presidente boliviano traria Snowden escondido em seu avião depois de participar de uma cúpula de países produtores de gás natural ocorrida nesta semana na Rússia. Por isso seu itinerário de voo foi bloqueado na Europa.

“Os Estados Unidos se aproveitaram desse rumor para lançar uma espécie de advertência ao presidente Morales e aos governos de esquerda da América Latina sobre o quanto está decidido a manter sua hegemonia na região”, acredita Molidiz, que conversou por telefone. “Vão enfrentar, inclusive com métodos não democráticos, as intenções dos países que buscam maior autonomia frente a Washington.” De acordo com o analista, esse tipo de atitude coloca em risco as leis internacionais. “Nem mesmo em tempos de guerra houve coisa parecida”, critica. “É preocupante que, apesar das convenções da ONU e outras normas que garantem imunidade aos chefes de Estados, se tenha atentado contra a vida do presidente.”

Radicado no Brasil, o analista uruguaio Bernardo Sorj, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembra que a atitude de França, Itália, Espanha e Portugal é injustificável sob todos os pontos de vista. “Não havia nada que pudesse ser considerado um risco enorme para a segurança dos países que Morales estava sobrevoando, o que, daí sim, poderia configurar uma situação de gravidade tal que justificassem medidas totalmente excepcionais, como o fechamento o espaço aéreo”, opina. “Isso só foi feito porque se tratava de um presidente de um país pequeno, sem grande relevância no comércio mundial.”

Em conversa telefônica, Sorj afirma que, apesar de Edward Snowden estar sendo procurado pela justiça dos Estados Unidos, sua presença no espaço aéreo de qualquer país não coloca em risco a segurança dos cidadãos desse país. “Além disso, não existe nenhuma demanda de extradição legal do ex-espião nestes países pelos que o presidente Evo Morales iria sobrevoar”, continua. “Se bem é uma pessoa que feriu os interesse da segurança nacional de seu país, Snowden não é uma pessoa perigosa ou um terrorista internacional.”

Por isso, o professor da UFRJ acredita que os governos francês, italiano, espanhol e português agiram a pedido de Washington. “Snowden deve estar com informações estratégicas que não são do interesse da Europa e dos membros da Otan, aliança militar de que esses países fazem parte”, sugere, apesar de os Estados Unidos terem afirmado, por meio de seu porta-voz, que não tiveram nada a ver com o caso. “Eles estão enfrentando uma pessoa com informações secretas, e não interessa que ele continue circulando com essas informações confidenciais.”

Enquanto a presidenta Dilma Rousseff não se pronunciava sobre o episódio, o PT soltou uma nota em que insta os países europeus a explicar as razões do bloqueio aéreo. “Caso tenha alguma relação com a suspeita de que o avião da República da Bolívia estaria transportando o ex-agente da CIA Edward Snowden, os governos europeus implicados precisam explicar por quais motivos agridem preceitos diplomáticos básicos em benefício do governo dos EUA, num caso que envolve espionagem eletrônica em massa praticada pelos Estados Unidos contra a população mundial, inclusive contra governos europeus.”

A Central Única dos Trabalhadores (CUT) também se posicionou. “A CUT repudia este atentado que serve apenas aos comandos imperialistas como forma de amedrontar, intimidar e tentar calar àqueles que não se rendem aos interesses hegemônicos e lutam contra as políticas econômicas de dominação e intervenção.”