Não sou, não

Ouvido por patrões e empregadas e fora da ‘playlist’, o brega venceu

Estigmatizados, artistas continuam nas paradas afetivas do público

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA

São Paulo – Há poucos dias, o cantor, compositor, garoto-propaganda e dublador de Topo Gigio (ratinho que fez sucesso por aqui nos anos 1970), Laert Sarrumor, ao assistir televisão, constatou, com emoção, que a pandemia acabou mesmo e que o Brasil “que dá certo” continua existido. Ele falava dos artistas populares, que em certo momento foram catalogados como cantores bregas, mas que estão em todas as bocas há décadas.

A classificação não acadêmica pode ocultar certo preconceito, porém não resiste a uma audição desses artistas. “Fadados e predestinados a levarem alegria e alento àqueles que os amam e que são por eles e elas amados, seus e suas fãs!”, afirmou Laert em texto publicado nas suas redes sociais (leia ao final desta matéria).

Alvos da censura

Os chamados bregas já foram objeto de estudo sério do pesquisador e professor Paulo Cesar de Araújo, sobre a ação da censura em torno de obras desses artistas. Lançado em 2002, o livro Eu não sou cachorro, não – Música popular cafona e ditadura militar mostra que os cortadores de versos não queriam saber apenas dos compositores de teor político, mas avançaram também em canções que tratavam de comportamento. Essa obra foi como uma base para a (proibida) biografia sobre Roberto Carlos.

Fundador e vocalista do grupo paulistano Língua de Trapo, Laert conta que sentiu orgulho da profissão ao ver aquela turma no programa Altas Horas, apresentado por Serginho Groisman na TV Globo.

“Sim, porque apesar de ter sido gestado e parido numa faculdade de comunicação, de ter se inserido no contexto de uma chamada Vanguarda Paulista, o meu modesto conjunto sempre teve desbragadamente os dois pés na música brega – sempre estivemos mais para Jovanguarda do que para Vanguarda. Aliás, ontem, em uma hora e cinquenta minutos de programa, essa palavra, Brega, não foi mencionada uma vez sequer. Serginho, respeitosamente, se referiu aos convidados e convidadas, o tempo todo, como artistas (muito) populares. Não que precisasse, todo mundo ali se assume como genuinamente brega e se orgulha disso.”

cantores bregas
Ayrton e Laert: mensagens sentimentais, artistas populares
(Fotos: reprodução/moaphotos)

Direto e objetivo

Para o jornalista, pesquisador, tradutor e músico Ayrton Mugnaini Jr., o “brega” tanto pode definir um conceito aceitável de certo gênero musical como expressar preconceito. “O termo surgiu como sinônimo de cafona, coisa de mau gosto, mal-feita, banal, rotineira, sem criatividade, com sentimentalismo exagerado. Nesse sentido, Tchaikovski, Grieg e Rachmaninoff são considerados por pessoas mais esnobes como a ala brega da música erudita”, diz Ayrton.

“Mas o brega tem a grande virtude de ser direto e objetivo, e portanto é ideal como meio de transmitir mensagens sentimentais. Daí surgiu a frase ‘se cantar o amor é ser brega, então eu sou brega'”, acrescenta.

Ele mesmo já usou o termo “brega” em algumas de suas músicas. “É como se eu assumisse os defeitos antes que a crítica os apontasse (riso). Gosto também de satirizar o brega e de procurar sobrelevá-lo com letras mais chiques. E, como eu gosto de brega, faço ‘sátira a sério’, e afetuosa, não satirizo somente o que condeno.”

O popular é amplo

Ayrton só vê algum exagero na afirmação de que eles são os verdadeiros artistas populares do país. “Música, para ser popular, não precisa ser apelativa, só precisa ser bem feita no que se propõe. A verdadeira música popular brasileira, inclusive popular no sentido de fazer sucesso comercial – ou seja, vender também em gravações, do 78 rpm aos spotifais, e eventos –, inclui cantigas folclóricas, maxixe, samba, marcha, forró, repente, modinha, modão, até ritmos estrangeiros abrasileirados como a valsa, o xote e o rock”. observa o pesquisador.

Ele cita duas frases de autores famosos. “Uma é de Carlos Drummond de Andrade, dos anos 1980: ‘A moderna música popular brasileira não é moderna, não é popular, não é brasileira e não é música.’ A outra é de Stanislaw Ponte Preta: ‘Não há nada mais autêntico do que o mau gosto, nem mesmo o bom gosto, porque a este muitos aderem por atitude’. Enfim, consumir brega em excesso pode causar anemia, mas em doses adequadas é bom.” “Ah, sim”, completa: “Antes do termo ‘brega’, esse tipo de música – basicamente bolero e iê-iê-iê com muito sentimentalismo – era chamado de ‘música povão’ e ‘música de empregadas domésticas’, mas que, acrescento eu, patrões e patroas ouvem às escondidas.”

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Saco de Gatos: todo mundo tem um pouco de brega (Foto: divulgação)

O que é brega?

Com outras palavras, é o que diz Paulo Tadeu, vocalista da banda Saco de Gatos, criada em 1982, em São Paulo, com veia marcadamente humorística, e que em 2005 se reencontrou com um repertório 100% brega, com grande participação do público. “No show, a gente pergunta: ‘O que é brega?’. E respondemos dizendo que brega é aquela música que você adora, mas não coloca na playlist para tocar pros amigos. No show, creio que as pessoas se encontram”, afirma.

Nas apresentações, o grupo se veste a caráter e incorpora os ídolos. “O Saco de Gatos sempre teve uma ligação forte com o brega. Todos os integrantes da banda cresceram ouvindo essas músicas. Então, já era algo das nossas raízes e influências musicais. Tanto é que, quando fazíamos composições próprias ligadas ao humor – e chegamos a gravar um CD com elas –, usávamos essas referências nas letras e arranjos. Até que um dia, depois de pensar em novos rumos para o grupo, surgiu essa proposta de tocarmos os clássicos do brega. E fazia todo o sentido.”

Retrato de época

Não só pelo humor presente nas músicas, mas pelo que Paulo Tadeu chama de retrato de uma época. “De caravanas de shows pelo Brasil profundo, do sucesso ligado a programas de TV como Silvio Santos, Chacrinha, Bolinha, e a programas de rádio como os do Zé Bettio e Barros de Alencar, entre outros, apresentadores consagrados no AM (quase ninguém mais sabe o que é rádio AM, talvez muitos já nem saibam o que é FM). Nosso show, portanto, é um tributo a artistas que ajudaram a construir uma cultura popular, que estavam com o coração ligado aos sentimentos de uma população gigante e ávida por esse tipo de som.” Neste domingo (7), por exemplo, o Saco de Gatos toca no restaurante pertencente a Ed Carlos, um dos ídolos da Jovem Guarda, no bairro do Cambuci, zona sul paulistana.

O jogo virou

Como todos na banda tinham seus próprios mitos entre cantores bregas, isso ajudou a moldar o repertório, conta o vocalista. “Tivemos acaloradas e divertidas discussões para decidir o que iria fazer parte das apresentações. O que está no show é o suprassumo do brega, fruto da nossa seleção e consenso. Mas, claro, muitos de nós gostariam de ter uma ou outra música para tocar. Eu, por exemplo, defendo a presença de uma canção da Carmen Silva, que fez sucesso cantando Adeus, Solidão, entre outras.”

Paulo acredita que essas músicas perderam espaço na mídia tradicional e também deixaram de ser garimpadas. “Nós conseguimos achar umas belas pepitas de ouro sonoro. E, claro, as pessoas se identificaram. Todo mundo tem um pouco de brega dentro de si”, afirma

Ele também identifica preconceito. “Tudo o que é muito popular costuma causar uma certa repulsa numa certa elite. Já foi assim quando o samba nasceu. Não podia ser diferente com o brega. Mas o que tinha um certo carimbo pejorativo virou o jogo, e agora é chique fazer uma festa e tocar Gretchen. É cult assistir a um documentário sobre o Sidney Magal. É inteligente falar de Odair José e de suas músicas polêmicas em meio a uma ditadura militar. O brega venceu. E só vence quem tem qualidade.”

Domingo Feliz, por Laert Sarrumor