Interminável

Bolachões cinquentões: a MPB lançou e tocou um pouco de tudo em 1972

Álbuns lançados em 1972 no Brasil nunca mais pararam de tocar. A arte venceu a ditadura

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
Novos Baianos, Paulinho da Viola, Taiguara, Milton, Mutantes e Elis: trilha sonora de 1972 mostra as várias faces da música brasileira

São Paulo – Na varanda da casa da rua Divinópolis, em Belo Horizonte, Bituca e Lô, cada qual com seu violão, foram improvisando em cima de uma melodia. “Quero mostrar uns troços”, tinha dito Lô ao amigo, ainda no bar. Seu irmão Márcio só assistia, para depois, empolgado, colocar letra. Estava entardecendo. Acabou a luz. Márcio pediu uma vela à mãe, dona Maricota, que ficou pacientemente segurando um toco. Ela foi a primeira a ver a letra pronta.

Noite chegou outra vez

De novo na esquina os homens estão

Todos se acham mortais

Dividem a noite, a lua, até solidão

Primeira parceria entre Milton Nascimento, o Bituca, e Lô Borges, com letra de Márcio Borges, Clube da Esquina foi lançada em 1970. Curiosamente, não faz parte do álbum de 1972 que se tornou antológico e ficou conhecido justamente por esse título, com a famosa fotografia de dois garotos sentados na terra. Clube da Esquina é um dos vários álbuns marcantes da discografia brasileira que estão completando 50 anos de lançamento.

Cais, trens, girassóis

Boa parte do repertório foi composta em 1971, quando Milton e sua turma foi morar em uma casa de praia em Piratininga, em Niterói (RJ). São 21 faixas, entre as quais os futuros clássicos Cais, O Trem Azul, Um girassol da cor do seu cabelo, San Vicente, Paisagem da Janela, Nada será como antes. Um trabalho coletivo: Milton, Beto Guedes, Lô, Luiz Alves, Márcio, Nélson Ângelo, Tavito, Toninho Horta, Ronaldo Bastos (autor de seis letras), Robertinho Silva, Wagner Tiso. Quase ao mesmo tempo, o jovem Lô, de 20 anos, lançava seu primeiro LP – sem título, se tornaria conhecido como “o disco do tênis”, por causa da capa.

discos 1972
Discos históricos de 1972 – Chico, Nara e Bethânia esperam o carnaval, Lô lança o ‘disco do tênis’, baianos Tom, Caetano e Gil mostram influências e Elza continua pedindo passagem (Reprodução/Montagem RBA)

O povo do Clube da Esquina ficou se banhando nos mares niteroienses enquanto compunha o álbum. Outra turma se mudou, em abril de 1972, para um sítio na distante Vargem Grande, zona oeste do Rio de Janeiro. Era um lugar remoto na época, perfeito para o estilo de vida alternativo de Galvão, Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor e outros. Tinha até campo de futebol para as peladas constantes.

Novos e novíssimos baianos

Assim, outro disco marcante está chegando aos 50: Acabou Chorare, lançado pelos Novos Baianos, os jovens do sítio. Com participação do grupo A Cor do Som, o LP abre com Brasil Pandeiro, de Assis Valente, e tem sucessos instantâneos como Preta Pretinha e Besta é Tu. Pepeu toca até craviola, um instrumento inventado nos final dos anos 1960 pelo violonista Paulinho Nogueira (que chegou, inclusive, às mãos de Jimmy Page, do Led Zeppelin).

Ainda nesse movimentado mundo dos discos de 1972, outros baianos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, recém-chegados do exílio imposto pela ditadura, lançaram álbuns sempre lembrados: Transa e Expresso 2222, respectivamente. Voltando de Londres, Gil mistura o pop com sua raiz nordestina, com faixas como Pipoca Moderna (com a Banda de Pífanos de Caruaru), Back in Bahia e Chiclete com Banana (Almira Castilho e Gordurinha, conhecida na interpretação de Jackson do Pandeiro). O mítico guitarrista Lanny Gordin participa das gravações.

Caetano gravou Transa ainda na capital inglesa. Um disco repleto de influências e citações, dirigido por Jards Macalé, com poema de Gregório de Matos em Triste Bahia e um pop reggae, Nine out of Ten. E teve ainda um outro baiano lançando disco em 1972: Tom Zé, com Se o caso é chorar, originalmente sem o título na capa. Uma das faixas, Menina amanhã de manhã, ganhou regravações nas décadas seguintes, como a feita pela cantora Mônica Salmaso.

Carnaval e sonho

Chico Buarque havia lançado no ano anterior um de seus álbuns mais marcantes, Construção. Mas não passou 1972 em branco, com a trilha sonora do filme Quando o carnaval chegar, de Cacá Diegues. Chico participa do longa ao lado de Hugo Carvana, Maria Bethânia e Nara Leão. Enquanto se aguardava o carnaval, uma possível metáfora para a liberdade, outro sempre “lembrado” pela censura, Taiguara, abria o LP Piano e Viola, seu oitavo álbum, com a eterna Teu Sonho não Acabou.

Do lado de samba, Paulinho da Viola lançava seu quinto álbum de estúdio. Trazia obras de Cartola, Monarco, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento e Wilson Batista, parcerias com Capinan e um futuro clássico de seu repertório, Guardei minha viola. Mas a faixa título do LP era simplesmente Dança da Solidão. Já Elza Soares cantou de tudo, até samba, em seu Elza pede passagem.

Com o simples nome Elis, um dos discos clássicos lançados em 1972 por Elis Regina ganhou no ano passado versão remixada por João Marcelo Bôscoli, seu filho. É um álbum que tem simplesmente Atrás da Porta (Francis Hime e Chico Buarque), Águas de Março (Tom Jobim), Cais e Nada será como antes (ambas de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), Mucuripe (Fagner e Bechior) e Casa no campo (Tavito e Zé Rodrix). Entre outras.

De Mutantes a Elomar

Teve pop também. Em maio de 1972, chegava Mutantes e seus Cometas no País do Baurets. E teve problemas com a censura, como conta Carlos Calado no livro A Divina Comédia dos Mutantes (Editora 34, 1995). A faixa Cabeludo Patriota teve o título alterado para A Hora e a Vez do Cabelo Nascer. O verso “meu cabelo é verde e amarelo” mudou para “verde e dourado” e em vez de “caspa” a letra passou a falar “cara de purpurina”. A censora explicou aos jovens do grupo que o uso da palavra caspa era “plasticamente feio”. A faixa que abriu o disco era puro rock: Posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o rock & roll., de Arnaldo Baptista, Rita Lee e Liminha. Tinha ainda Beijo Exagerado, o clássico Rua Augusta (Hervé Cordovil) e o futuro cult Balada do Louco.

O ano de 1972 teve muito mais discos. Outro lançado foi Das Barrancas do Rio Gavião, que marcava a estreia do cantador Elomar (O Violêro). Teve até um conturbado festival, o último de sua época, fechando um ciclo. Mas mostrou que nem a ditadura conseguia conter a força criativa dos artistas brasileiros. Tanto assim que um ano depois, no momento mais obscuro da repressão e da censura, sairiam tantos álbuns que a discografia daquele ano ganharia um livro específico. E tem gente preparando outro, relativo a 1979. Seja qual for o ano, a MPB não parou de tocar.