Cicatrizes e Pesadelo

MPB4 lembra em show 50 anos do LP que marcou resposta à ditadura. ‘É triste, andamos para trás’

Show marca lançamento de LP que trouxe “Pesadelo”, livre da censura por uma artimanha do autor

Reprodução e Camilla Guimarães/Divulgação
Reprodução e Camilla Guimarães/Divulgação
'Cicatrizes' é considerado um dos álbuns mais importantes do MPB4, grupo que está na estrada há 57 anos

São Paulo – Até hoje se comenta como uma música com conteúdo tão explícito tenha passado pela censura da época. Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, tem a cara daquele período de opressão (1972). E é sempre uma das faixas mais lembradas do LP Cicatrizes, emblemático álbum da discografia do MPB4, que vai fazer show para lembrar dos 50 anos de seu lançamento. Outro disco que se junta à lista de LPs cinquentenários da música brasileira.

Não sem uma observação meio amarga de Miltinho, da formação original do grupo, ao comentar como o disco continua tão atual. “A gente canta músicas de 50 anos atrás, e a plateia entende exatamente do mesmo modo que aquela plateia dos anos 1970 entendia. É triste, andamos pra trás…”, afirma. “Só que lá atrás tivemos anistia, eleições diretas, momentos de esperança…”, lembra Miltinho, destacando o papel do grupo na resistência e no movimento pela volta da democracia.

Clima soturno

Eles lembram que o repertório reflete o momento político, o “clima soturno” do país. Com direção de Mazola e coordenação de Roberto Menescal, o disco tem arranjos vocais e instrumentais de Magro Waghabi, que morreu em 2012 (desde então, é substituído por Paulo Malaguti Pauleira). Magro, Miltinho, Aquiles e Ruy Faria formavam o MPB4 – Ruy saiu em 2004 (com Dalmo Medeiros em seu lugar) e morreu quatro anos atrás. Por enquanto, há apenas um show marcado, Cicatrizes – 50 Anos, no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro, em 7 de abril.

O disco traz canções que nunca mais deixaram o repertório do grupo, como San Vicente (Milton Nascimento e Fernando Brant) e Partido Alto (Chico Buarque), além de pérolas como O Navegante (Sidney Miller) e Ilú-Ayê (Terra da Vida), de Cabana e Norival Reis. A faixa-título do LP traz Miltinho como compositor, ao lado do letrista Paulo César Pinheiro. O show terá sete das 12 faixas do álbum, com os arranjos originais de Magro.

De Guimarães a Aguinaldo

Quem conta a história de Pesadelo é o próprio autor, no livro Histórias das Minhas Canções (Leya, 2010). Antes, Paulo César Pinheiro explica como “funcionava” a censura, que por aqueles dias vetou uma canção chamada Sagarana, título de livro de Guimarães Rosa. Pois o compositor foi à sede dos censores, no Rio, com a letra e o próprio livro, para explicar do que se tratava. Afinal, era um tributo ao escritor. Um dos funcionários respondeu, depois de um constrangedor silêncio:

“É melhor a gente manter o corte. Isso parece linguagem de código. Mensagem cifrada. Coisa de guerrilheiro, sei lá. Pra todos os efeitos não sobra pra gente.”

Nesse contexto, como liberar Pesadelo, com seus versos tão diretos, cheios de revolta, como ele mesmo afirmou? Paulo César desafiou o MPB4: “Se liberar, vocês gravam?”. O grupo topou. A artimanha foi até simples: ele “infiltrou” a letra de Pesadelo na pasta de músicas de um disco de Aguinaldo Timóteo, cantor não visado pela censura. A liberação saiu no dia seguinte.

Partido Alto, que também sofreu com a censura (“Pouca titica” virou “pobre coisica” e “Nasci brasileiro” mudou para “Nasci batuqueiro”), agora é apresentada com uma estrofe que não chegou a ser gravada.

Deus me fez um cara surdo, cego e censurado

Submisso, submerso, subalimentado

Mas um dia o vento vira, e é bom tomar cuidado

Pois a coisa fica feia também pro seu lado

Passe bem, muito obrigado