Desvairada

A ‘Semana de 22’: escavações nas terras brasileiras em busca de sua grandeza e pequenez

Centenária, a Semana de Arte Moderna insere-se na busca sobre o que é ser brasileiro. Confira alguns dos vários eventos que celebram a data

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA

São Paulo – Na chegada dos anos 1920, a cidade de São Paulo atingia os 600 mil habitantes (iria a 1 milhão na década seguinte). Eram tempos turbulentos. O mundo saía de sua primeira guerra mundial, e no Brasil o crescimento vinha acompanhado de mobilização social e crises. Em 1917, uma inédita greve geral chacoalhou os paulistanos em tempos de incipiente industrialização. Sete anos depois, em 1924, o município sofreu bombardeios de forma inclemente pelas forças federais. Em 1922, ano do centenário da Independência, o país (ou os poucos que podiam votar) escolheu seu 12º presidente da República, Arthur Bernardes. Ainda naquela ano, os tenentes se revoltaram no Forte de Copacabana e surgiu o temível PCB. No meio de tudo isso, um acontecimento cultural marcou época. A Semana de Arte Moderna de 22 pode ter sido “um grito no salão bem comportado”, como classificaria Carlos Drummond de Andrade meio século depois.

“Manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional”, comentou Mário de Andrade em conferência de 1942, três anos antes de sua morte.

Modernistas “cancelados”

O centenário do evento desencadeou uma enxurrada de “revisitas” e análises, com direito a reacender até antigas rivalidades entre cariocas e paulistas, que se pensavam perdidas em algum ponto da via Dutra. A ponto de o professor de Comunicação Eduardo Nunomura afirmar em artigo para o site cultural Farofafá, do qual é editor, que os modernistas seriam “cancelados” nos dias de hoje. A propósito, a Semana de 22 foi realizada no coração de São Paulo, mas teve muita gente de outros estados. Com destaque para os cariocas Di Cavalcanti e Villa-Lobos e o pernambucano Vicente do Rego Monteiro, entre outros.

semana de 22
Di Cavalcanti e seu Afresco, de 1925. Pintor carioca foi um dos organizadores da Semana de 22. Crítico do elitismo na arte brasileira, registrou a diversidade e o cotidiano do povo. Filiou-se ao PCB em 1928

O evento consistiu, basicamente, em uma exposição no saguão do Municipal (telas e esculturas) e três noites de apresentação no palco – palestras, concertos, leituras de textos. Um escritor, René Thiollier, referiu-se às obras de Anita Malfatti como “horrores épicos”. Já o escritor e crítico Sérgio Milliet teve visão bem diferente, pois referiu-se à pintora como “vigorosa, ousada, inteligente”. Logo na abertura, Mário de Andrade comprou o quadro O Homem Amarelo, chegando na frente do conselheiro Antônio Prado, que também estava interessado na tela.

A parte musical (com direito a Villa-Lobos entrando no palco de chinelo, por causa de um calo, ou gota, segundo outros relatos) costuma ser menos lembrada. Recentemente, o Sesc abriu uma plataforma, de acesso gratuito, com as músicas apresentadas nos três concertos, além dos textos recitados, tudo regravado em vozes e mãos contemporâneas.

Filha com muitos pais

Na biografia que escreveu sobre Mário de Andrade (Em busca da alma brasileira, 2019, Estação Brasil), Jason Tércio relata que existem versões contraditórias sobre a ideia original da Semana de 22, “uma filha com muitos pais”. Mário de Andrade chegou a dizer que não sabia quem era, só tinha certeza de que não era ele.

Sabe-se que o empresário do café e mecenas Paulo Prado teve participação financeira decisiva, depois de convencido pelo escritor Graça Aranha. Este não era um modernista, ou “futurista”, como se falava na época (referência equivocada ao italiano Filippo Tommaso Marinetti), mas comprou a proposta dos jovens. O vetusto jornal O Estado de S. Paulo chegou a anunciar que “por iniciativa do festejado escritor” haveria um evento com aqueles “que representam as mais modernas correntes artísticas”.

Recitais e algazarra

A abertura da Semana de Arte Moderna foi na noite de 13 de fevereiro, com a presença do governador Washington Luís (que seria o sucessor de Arthur Bernardes na Presidência) e do prefeito Firmiano Pinto. A plateia era diversificada: empresários, fazendeiros, profissionais liberais, estudantes. Na segunda noite o preço dos ingressos aumentou, pela presença da prestigiada pianista Guiomar Novaes, outra “não modernista”. Ela quase desistiu depois de ver tanta “irreverência” no início do evento, especialmente uma sátira a Chopin.

Nessa noite, depois de palestra de Menotti del Picchia (“Queremos libertar a poesia do presídio canoro das fórmulas acadêmicas”), Mário de Andrade subiu ao palco e declamou Inspiração (que abre com “São Paulo! comoção da minha vida…”) e Domingo, no meio de algazarra. Ao tentar ler trecho do romance inédito Os Condenados, Oswald de Andrade foi recebido por “miaus” e “cocoricós”. Na sequência, Ronald de Carvalho leu poemas seus, do futuro integralista Plínio Salgado e de Manuel Bandeira. Tércio conta que o barítono Nascimento Filho foi interrompido por um grito vindo da plateia (“Riiiidi Pagliaaaacio!”) e reagiu, olhando para a galeria: “Desce daí pra eu lhe ensinar como se canta”.

Caráter nacional

Em livro recém-lançado (Semana de 22 – Antes do começo, depois do fim, 2021, Estação Brasil), José de Nicola e Lucas de Nicola destacam um debate daquele período que permaneceria, sobre o ser brasileiro. Citam o Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924) e o livro Pau Brasil (1925), de Oswald. Daí em diante, houve uma sucessão de obras, movimentos e manifestos que marcariam distintas posições em relação à identidade do país, ao caráter nacional ou até mesmo a heróis nacionais, alguns muito bem caracterizados, outros ‘sem nenhum caráter’…”, escrevem. O referido Macunaíma, personagem criado por Mário, foi publicado em 1928. Viraria filme quase 40 anos depois, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, com Grande Otelo, Paulo José e Dina Sfat no elenco.

No último domingo (13), o professor e compositor José Miguel Wisnik publicou no jornal Folha de S.Paulo extenso ensaio em que analisa origens e influências do movimento. E estabelece uma ligação com o atual momento brasileiro, marcado pela negação do conhecimento. Cita definições de Oswald, sobre a “alta” e a “baixa” antropofagia. A primeira reconhece o “outro” em si.

“Já a baixa antropofagia, ele resumiu, no ‘Manifesto Antropófago’, em quatro palavras: inveja, usura, calúnia e assassinato. Não é difícil reconhecer essas forças nefasta no panorama atual, na forma da cultura do ressentimento (inveja), do liberalismo oportunista (usura), das fake news (calúnia) e da necropolítica (assassinato)”, escreve Wisnik. Ele conclui o artigo afirmando que o Brasil de 2022 “está espremido entre a alta e a baixa antropofagia”.

COMEMORAÇÕES

Há um sem-número de atividades relacionadas ao centenário da Semana de Arte Moderna. Confira algumas:

  • A Pinacoteca de São Paulo abriu em 22 de janeiro a mostra Modernismo – Destaques do Acervo, que vai até 31 de dezembro. Estão expostos 134 trabalhos de artistas ligados ao evento, como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Lasar Segall e outros. Mais informações no site da instituição.
  • No Memorial da América Latina, desde o último domingo (13) foi aberta exposição de 16 caricaturas de artistas do movimento. A curadoria é de Jal (José Alberto Lovetro), presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, e as obras são do artistas Luiz Carlos Fernandes. Saiba mais.
  • No Museu Catavento, foi aberta no dia 11 a exposição O Ateliê de Brecheret, artista plástico que trabalhava na antiga sede do Palácio das Indústrias, na região central de São Paulo, que também chegou a ser sede da prefeitura. Veja mais aqui.
  • Com ou sem centenário, um ponto obrigatório é a Casa Mário de Andrade, que fica na Barra Funda, zona oeste paulistana. O famoso sobrado da rua Lopes Chaves é uma atração por si só, mas também está agora com eventos relacionados à Semana. Recentemente, o governo estadual anunciou uma expansão do imóvel.
  • Na Avenida Paulista, o prédio da Fiesp abriga desde dezembro a exposição Era uma vez o moderno. Parceria do Centro Cultural Fiesp e do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), com mais de 300 obras e documentos. Vai até 29 de maio.