Ponto de partida

Sérgio Ricardo, do violão quebrado à defesa intransigente da cultura e arte brasileiras

Autor de obras marcantes, inclusive no cinema, e protagonista de cena épica dos festivais, artista morreu aos 88 anos

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
No palco, antes de quebrar o violão (em 1967), em show recente. com dois dos filhos. E Othon Bastos em 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', com trilha sonora de Sérgio Ricardo

São Paulo – Poucos anos atrás, Sérgio Ricardo apresentava-se em São Paulo, tocando piano e contando histórias, quando alguém da plateia gritou: “Toca Beto bom de bola!”. O artista juntou elegância e humor ao negar o pedido. “Não posso, ou vou ter que jogar o piano em vocês”, afirmou, arrancando risos.

Referia-se, com leveza, à noite de 21 de outubro de 1967 no teatro da TV Record, em São Paulo, quando tentou em vão cantar a música pedida décadas depois. Era a final do 3º Festival da Música Popular Brasileira. As vaias da plateia não permitiriam. Sérgio Ricardo terminou espatifando seu violão e arremessando o instrumento em direção ao público. Essa cena, celebrizada na história dos festivais, de certa forma prejudicou o conhecimento de sua obra, que enveredou também pelo cinema.

João Lufti, seu nome de batismo, morreu na manhã desta quinta-feira (23) no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro. Havia completado 88 anos há pouco mais de um mês, em 18 de junho, quando estava internado devido à covid-19. Ele se curou, mas teve complicações e morreu por insuficiência cardíaca.

Ele nasceu em Marília, interior paulista. Tinha três filhos: Adriana, Marina e João Gurgel. No dia 19, filhos e amigos participaram de uma live para homenageá-lo. Entre eles, Chico Buarque, que estava completando 76 anos.

Social e romântico

Em abril de 1964, Sérgio Ricardo lançou seu primeiro longa-metragem, Esse mundo é meu. A estreia foi justamente no dia do golpe,e não havia ninguém no cinema, como ele lembrou 50 anos depois, ao falar de seu “primeiro fracasso”.

Eram tempos de Cinema Novo. E o compositor, no mesmo ano, assina a trilha sonora de um dos mais marcantes filmes brasileiros, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Segundo ele, Glauber “possibilitou-me descobrir minha vocação de cantador de feira nordestina, desencadeando uma vertente na minha composição, utilizada em seguida em outros trabalhos”. O compositor faria ainda Barravento, canção inspirada em outro filme do cineasta baiano.

Outra composição sempre lembrada de seu repertório é Calabouço, lembrando do estudante Edson Luís, morto pela policia em 1968 durante um protesto. Sérgio Ricardo cantou essa música em 2013, em evento que homenageava outro estudante assassinado pela ditadura, Alexandre Vannuchi Leme.

Uma obra social e também romântica. Basta lembrar de outra canção conhecida, o samba Folha de papel, “filho direto da Bossa Nova”, como ele descreveu no CD Ponto de partida, lançado em 2008. Sérgio Ricardo também era pintor. E um pensador das coisas de seu país. Em livro lançado em 1991 – não por acaso, com o título de Quem quebrou meu violão –, ele dizia: “Não havendo um pensamento claro do que é a brasilidade, não se tem seu povo. (…) Um povo que não tem seu pensamento organizado só se presta à escravidão, aproveitada por outras nações mais poderosas”.

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Ouça a participação de Sérgio Ricardo no programa Hora do Rango, da Rádio Brasil Atual. O artista foi acompanhado pelos filhos Marina Lutfi e João Gurgel