O inconformista Sérgio Ricardo, de violão quebrado, mas dono do mundo

Compositor, que fará 80 anos em 2012, recebe homenagem e é tema de exposição no Rio

Compositor terá exposição sobre sua vida (Foto: Divulgação/ Site pessoal)

São Paulo – Poucos anos atrás, Sérgio Ricardo fazia uma apresentação em São Paulo quando alguém da plateia pediu Beto Bom de Bola. Podia até se esperar uma reação irritada, mas o compositor se mostrou bem humorado e disse: “Agora eu toco piano, não posso jogar o piano em vocês”. A piada era referência a uma das mais famosas cenas da era dos festivais. Em 1967, na final do festival da TV Record, Sérgio Ricardo se irritou com o público – que vaiava e não deixava que ele apresentasse a música – e não teve dúvida: quebrou o violão e o arremessou na direção das cadeiras. “Vocês ganharam! Este é o país subdesenvolvido! Vocês são uns animais!”, afirmou, antes de se retirar do palco. O episódio nunca mais foi esquecido, mas não se trata de um autor de uma nota só. A obra de Sérgio Ricardo é ampla, inclui cinema e artes plásticas e será tema de exposição inaugurada na noite desta terça-feira (24), no Rio de Janeiro, para abrir as comemorações pelos 80 anos do artista, que serão completados em 18 de junho.

Em 1991, Sérgio Ricardo lançou o livro Quem quebrou meu violão. Na introdução, ele explicava que não suportava “nos ver, a cada dia que passa, nos despedaçando pelos caminhos da incompreensão de nossa própria realidade, e sabendo que o sintoma básico de nossa ignorância é a imposição maquiavélica dos manipuladores em desfigurar nossa identidade, ao nos perdermos das mãos de nossa cultura própria”. 

Mais recentemente, em 2008, ele criticava quem atribuía o desaparecimento de alguns artistas a sua “desimportância estética e não à prepotência do poder”. E acrescentava: “Querem tapar o sol com a peneira, ou nao entenderam nada. É comum pular-se da Bossa Nova à Tropicália como se nada de importante houvesse acontecido entre os dois movimentos. Ficou por isso mesmo, porque ninguém foi cobrar seu lugar na história.” Sérgio Ricardo fez a lista. “Nomes como Sidney Miller, Taiguara, Theo de Barros, Chico de Assis, Marília Medalha, Torquato Neto, João do Vale, Guerra Peixe e tantos outros, além dos que alcançaram maior notoriedade, mas de cujas obras não se dá o relevo que merecem. Especificamente aquelas obras, cuja estética vinha impregnada de uma evolução de nossa linguagem, dando prosseguimento ao processo cultural responsável pela fisionomia do país. Como as de Vandré, Chico Buarque, Paulinho Pinheiro, Baden Powel, Aldir Blanc, Edu Lobo, Guarnieri, Thiago de Mello, Ferreira Gular, Drummond de Andrade, e tantos outros. Porque não tocam mais no rádio, não estão na telinha, nas telonas, com o devido destaque. A arte eliminada.”

Em 1964, o compositor recebeu de Gláuber Rocha a tarefa de compor a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que se tornaria um dos clássicos do cinema brasileiro. “Sérgio Ricardo, embora seja sambista com mistura de morro e asfalto, tem paixão pelo Nordeste, tem a vantagem de ser cineasta e sabe que música de filme é coisa diferente: tem de ser parte da imagem, ter o ritmo da imagem, servir (servindo-se) à imagem”, disse o cineasta no encarte do disco. “Durante a gravação fui massacrado por ele. Tirou todo o meu ranço de cantor de inferninho e me botou cantando esganiçadamente como um cantador de feira”, contou o músico. “Quando afinal projetou o filme para uma casa cheia de artistas, jornalistas e intelectuais, eu não acreditava que aquele gênio pudesse entender tanto de trilha sonora. Sem falar no filme em si, que foi aquela porrada.”

No mesmo ano, o próprio Sérgio Ricardo filmava Esse Mundo é Meu, ansioso pela exibição. “Esperava ver a multidão entrando e saindo do cinema. A crítica elogiou , tudo certinho, só que foi lançado no dia 1º de abril de 1964. Grande piada! Era o dia do golpe, e a tal multidão que eu esperava nem saía de casa, com medo de bala.”

Ele rodou o mundo, e em 2008 lançou o CD Ponto de Partida, que traz, entre outras canções, todas comentadas, a faixa-título do filme de Gláuber. Para o pesquisador musical Ricardo Cravo Albin, organizador da homenagem desta terça, Sérgio Ricardo viveu com discreta elegância “todas as facetas de artista múltiplo e vário, criativo e refinado”. A exceção foi o episódio de 1967, quando o artista teria sido provocado “em seu ardor de jovem, de revolucionário, de idealista”.

Para Cravo Albin, o público não entendeu a mensagem de Beto Bom de Bola, “música solidária e fraterna”. E de tom emocional, como Zelão, talvez mais conhecida composição de Sérgio Ricardo. “Um grito de protesto social nos melhores tempos da Bossa Nova dos barquinhos, dos banquinhos e violões da classe média, do sol, do mar, e das garotas das praias cariocas”, define o produtor, que entregará o diploma “Tenório Júnior” ao compositor.

Choveu, choveu
A chuva jogou seu barraco no chão
Nem foi possível salvar violão
Que acompanhou morro abaixo a canção
Das coisas todas que a chuva levou
Pedaços tristes do seu coração

Outra composição de boa safra conta um pouco do espírito libertário do compositor.

Esse mundo é meu
Esse mundo é meu
Fui escravo no reino
E sou
Escravo no mundo em que estou
Mas acorrentado ninguém pode
Amar

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