Jogo duro

Livro conta a luta de jogadores de futebol por justiça e democracia

“Democracia Futból Club” conta as histórias resistência e luta de onze jogadores e um treinador, todos de um tempo em que o futebol era menos “acéfalo”

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Do goleiro ao atacante, todos resistiram ao autoritarismo e lutaram, cada um de sua maneira, pela justiça em suas regiões

São Paulo – O brasileiro Sócrates, o argelino Rachid Mekhlouf, os franceses Lilian Thurram e Eric Cantona, e o chileno Carlos Caszely, além de terem sido grandes jogadores de futebol, têm a carreira e a vida marcadas por outra característica em comum: a luta pela democracia. O engajamento desses e de outros atletas é tema do livro Democracia Futból Club (Editora Ludopédio), do jornalista e pesquisador Roberto Jardim.

Como a escalação de um time de “titulares”, o autor escalou histórias de 11 jogadores e um treinador. Entretanto, a formação do elenco não prezou o critério técnico, mas a relevância desses personagens fora das quatro linhas. Assim, Roberto Jardim “manda a campo” Claudio Tamburrini, Agustín Lucas, Lilian Thurram, Pedro Graffigna, Afonsinho, Obdulio Varela, Carlos Caszely, Sócrates, Eric Cantona, Reinaldo e Rachid Mekhloufi. Com a prancheta, José Ricardo de León.

A maior parte dos perfilados no livro viveu durante uma ditadura, como Tamburrini (Argentina) e o treinador, Ricardo de León (Uruguai). O autor afirma que o contexto político, somado ao nascimento e a infância, vividas em suas respectivas comunidades, ajudaram na politização desses atletas.

“Teve jogador que mudou o posicionamento ao longo do tempo, como o Reinaldo. Mas você pega o Afonsinho, por exemplo, que era filho de sindicalista ferroviário. O Obdulio Varela era jornaleiro, viveu na rua e absorveu isso para a vida. A maioria tem uma história por trás e ajuda na formação política”, explicou.

Volta à esquerda

O livro traz a história de dois ícones do futebol e da resistência uruguaia pela democracia: De León e o volante Pedro Graffigna. Ambos defendiam a cor violeta do Defensor, clube da capital, Montevidéu, em 1976, em plena vigência do regime ditatorial do general Antonio Francese – primeiro presidente após o golpe civil-militar uruguaio de 1973.

De León era professor de escola pública e filiado ao partido comunista. Em sua trajetória, recusou-se a treinar a seleção uruguaia, que impôs seu silenciamento político como contrapartida. Já Graffigna era militante de esquerda e foi um dos símbolos do Defensor dentro de campo.

Em 1976, o time violeta foi campeão uruguaio e quebrou a hegemonia de Nacional e Peñarol, tornando-se o primeiro pequeno clube a vencer o torneio nacional. Os jogadores marcaram a vitoriosa campanha pelo gesto de cerrar os punhos a cada gol marcado.

O elenco, engajado politicamente e contrário à ditadura, resolveu fazer o último protesto na partida de celebração do título, com uma volta olímpica “ao contrário”, ou seja, à esquerda.

Livro contra a trajetória de 11 jogadores e um técnico de futebol politicamente engajados

“Era um grupo forte, ligado à esquerda, tanto é que o atacante Luis Cubillas era a única exceção. À véspera do último jogo, o De León disse que era preciso criar uma comemoração diferente para aquela ocasião, quando ninguém podia se manifestar no país, e aconteceu a volta olímpica à esquerda”, relata o autor.

Resistência brasileira

Durante a ditadura civil-militar brasileira, entre 1964 e 1985, também houve jogadores que enfrentaram o autoritarismo e lutaram pela redemocratização do país. Como exemplo de resistência política nos gramados nacionais, o livro perfila os ídolos Reinaldo, do Atlético Mineiro), Sócrates, um dos líderes da histórica “democracia corintiana”, e o botafoguense Afonsinho.

Além de seus gols, na década de 1970, a luta de Reinaldo também marcou sua carreira: a cada bola na rede, o jogador do Atlético Mineiro erguia o punho direito cerrado e esticava seu braço esquerdo junto ao corpo. Além de representar a resistência à ditadura, o gesto era uma homenagem ao movimento negro norte-americano Panteras Negras. Após deixar o futebol, o atacante seguiu sua luta pela democracia. Chegou a ser eleito deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores e vereador de Belo Horizonte, pelo Partido Verde.

“Ele resolveu se posicionar politicamente nos campos e sofreu pressão do então presidente Ernesto Geisel. Na Copa do Mundo de 1978, ele marca um gol, faz o gesto e, no jogo seguinte, ele foi tirado da equipe. Reinaldo ainda sofreu boicotes, espalharam notícia de que ele era gay e isso tirou ele da Copa de 1982 também, por exemplo”, relata o jornalista.

O carioca Afonso Celso Garcia Reis, o Afonsinho, além de jogador, era aluno da Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro e militava no movimento estudantil. A dupla jornada não rendia elogios, ao contrário. “Diziam para ele que futebol é para jogador e não estudante”, conta Jardim.

Entre as finais do Campeonato Carioca e a Taça Brasil de 1968, Afonsinho ajudou a organizar protestos e participou da também histórica Passeata dos 100 Mil, manifestação popular contra o regime autoritário. “Em 1972, o Pelé disse que o Afonsinho era o primeiro homem livre do futebol brasileiro”, acrescenta o jornalista.

Gigantes fora de campo

Duas outras grandes histórias de jogadores de futebol que lutaram pela democracia estão no livro. Entre elas, a do goleiro Claudio Tamburrini, que não deixou um grande legado dentro de campo, mas fora dele. O argentino só atuou dois anos no futebol profissional, quando teve a carreira suspensa, em 1977, após ser preso, em casa, pelos militares.

Naquele período, a Argentina vivia um período de rigorosa ditadura militar, que teve início em 1976, quando um golpe de Estado depôs a então presidenta María Estela Martínez de Perón, conhecida como Isabelita Perón. A Junta Militar assumiu o poder e, em seguida, indicou o general Jorge Rafael Videla para presidir o país.

Tamburrini nunca foi ligado aos movimentos de resistência que se seguiram ao golpe, mas seu histórico como militante estudantil resultou numa prisão que durou 120 dias. “Claudio entraria no livro mesmo se houvesse outro goleiro mais renomado, porque foi vítima da ditadura, que interrompeu o sonho dele. Ele foi torturado, conseguiu fugir da prisão e sobreviveu. É algo raro na época. Ele ainda ficou alguns meses clandestino na Argentina, antes de pegar exílio na Suécia”, diz o jornalista.

Outro craque que também protagonizou uma luta pela democracia é o argelino Rachid Mekhloufi. Na década de 1950, a Argélia era uma colônia francesa. Por essa razão, Mekhloufi defendia as cores da França.

Craque do time Saint-Étienne, Rachid recusou-se a cumprir a convocação para disputar a Copa do Mundo de 1958 pela França. Em vez disso, preferiu jogar futebol em nome da libertação e pela democracia da Argélia. Entretanto, depois da independência de seu país, em 1962, voltou ao futebol para encantar os torcedores franceses.

“Ele jogaria a Copa de 1958 e, nas vésperas do torneio, os jogadores argelinos o chamaram para participar pela seleção da Frente de Libertação Nacional, e ele aderiu. Esse time rodou vários países para juntar fundos e financiar a luta, por meio do futebol. Portanto, ele abriu mão da Copa para ficar quatro anos lutando pela independência”, explica Jardim.

O impacto da Frente de Libertação Nacional foi imediato. Os jogadores denunciavam o tamanho da guerra que França e Argélia protagonizavam. As estrelas argelinas se recusavam a jogar pela metrópole e começavam a defender sua colônia. Mekhloufi, em especial, havia se tornado um dos “soldados” mais importantes da revolução, mas sem ter pego em uma arma.

Em seu blog, o autor comenta: “Dificilmente seria possível encontrar uma seleção dessas (de jogadores politicamente conscientes e ativistas) nos tempos atuais. Afinal, contratos de marketing praticamente tornaram o futebol acéfalo, politicamente falando — isso porque os poderosos que determinam a “neutralidade” não a veem como um gesto político, também. Hoje, os boleiros só se manifestam sobre o futebol ou sobre seus patrocinadores, deixando de lado qualquer tema que possa criar polêmica para quem lhes sustenta — salvo raríssimas exceções, claro.”

Edição: Fábio M. Michel