Negacionismo

Ginecologistas se manifestam contra resolução do CFM que inviabiliza aborto legal

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia reagiu à proibição de um procedimento básico em abortamento após a 22ª semana. “O Conselho Federal de Medicina impõe restrições ilegais com limite gestacional”, diz em nota

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Para a entidade de ginecologistas, o CFM impõe às mulheres, adolescentes e meninas, em especial às de maior vulnerabilidade, iniquidades em seu acesso à saúde

São Paulo – A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) divulgou nota nesta sexta-feira (5) contra a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que, na prática, inviabiliza o aborto legal. Isso porque proíbe um procedimento chamado assistolia fetal após as 22 semanas de gestação. Trata-se de uma injeção de substâncias que provocam a morte fetal para o esvaziamento uterino. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a prática no aborto legal.

O Brasil permite o aborto apenas quando a gestação resulta de estupro, quando há risco de vida materna, conforme o Código Penal, artigo 128, e nos casos de feto com anencefalia, permitido pelo Supremo Tribunal Federal. Anencefalia é a falta de partes do cérebro, como o encéfalo e a calota craniana. Isso ocorre devido a falhas do desenvolvimento nos primeiros 26 dias de gestação.

“O CFM acaba proibindo a realização de abortos após as 22 semanas, uma vez que a realização da indução de assistolia fetal é procedimento necessário e essencial para o adequado cuidado ao aborto. Com isto, o CFM estabelece restrições ilegais ao acesso ao aborto, estabelecendo limites de tempo gestacional para o procedimento no Brasil. Restrições estas que não encontram respaldo na legislação atual, além de desconsiderar paradigmas importantes de Direitos Humanos, expressos em Tratados e Convenções Internacionais dos quais o Brasil é signatário”, afirma a entidade em nota.

E mais: “O CFM impõe limitações a um direito, qual seja a realização da indução de assistolia fetal no cuidado ao aborto em idade gestacional superior a 22 semanas. Desta forma, a resolução do CFM torna as mulheres vítimas de estupro penalizadas pela imposição de uma idade gestacional limite para a realização da antecipação terapêutica do parto.”

Riscos físicos e mentais associados ao aborto inseguro

A nota da Febrasgo lembra que, sob a ótica dos direitos humanos, o Brasil é signatário de vários pactos. Do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do Pacto Internacional em Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e da Convenção de Direitos da Criança. “Todos estes tratados obrigam os Estados a proteger as pessoas contra os riscos físicos e mentais associados ao aborto inseguro, e estabelecem que a redução da mortalidade materna (incluindo entre meninas e adolescentes) passa pela prevenção do aborto inseguro”, completa.

Além disso, segundo a entidade, o CFM impõe às mulheres, adolescentes e meninas, em especial às de maior vulnerabilidade, iniquidades em seu acesso à saúde. Isso porque “o acesso tardio ao aborto seguro é consequência de um sistema de saúde que impõe bloqueios diversos a quem busca abortar dentro das previsões legais”. “As mulheres que solicitam aborto previsto em lei deveriam ter acesso aos serviços de saúde já nos primeiros meses de gestação, quando a interrupção é mais simples”, ressaltam ainda.

Vítimas de estupro

Mais cedo, a federação informou que a medida já está prejudicando meninas e mulheres vítimas de estupro em várias partes do país. À jornalista Cláudia Collucci, da Folha de S.Paulo, falou em pelo menos quatro casos. São mulheres e crianças estupradas, com gestações avançadas, em que os médicos estão temerosos em interromper a gravidez. Isso por causa do veto imposto pelo CFM.

“Estamos recebendo várias queixas de médicos, do Amazonas ao Nordeste, de meninas que estão chegando com gestações mais avançadas para interrupção da gravidez e os médicos não estão sabendo o que fazer porque se sentem proibidos pelo CFM”, disse ao jornal Rosires Pereira, presidente da comissão de violência sexual e interrupção da gestação prevista em lei da Febrasgo, federação que reúne ginecologistas e obstetras de todo o país. A sugestão, nesses casos, tem sido que os médicos desses serviços entrem em contato com as Defensorias Públicas e Ministérios Públicos das suas regiões para obter amparo judicial.

Menina de 12 anos, grávida de 27 semanas: Médicos temem represálias

Um desses casos, segundo o jornal, é de uma menina de 12 anos, grávida de 27 semanas. Há autorização judicial para o aborto mas, mesmo assim, a equipe médica teme sofrer represálias do CFM. Outro é de uma mulher de Curitiba (PR) que foi violentada e mantida prisioneira por um traficante. Com a prisão do homem, ela procurou o serviço de aborto legal com 24 semanas de gestação. “Essa mulher tem direito de interromper a gravidez ou não tem? Onde estão os direitos humanos? A gente tem que proteger essas mulheres”, disse.

“Do ponto de vista do direito, não há limite de idade gestacional para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Quem procura interromper a gravidez depois de 22 semanas? São sempre pessoas pobres. Mulheres jovens, meninas de 10, 11, 12 anos que foram violentadas em domicílio que, por uma série de razões, não conseguiram acesso rápido ao aborto legal”, disse Rosires ao jornal.

Em artigo publicado nesta quinta (4), o desembargador José Henrique Torres, do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma que a resolução do CFM é “ilegal e inconstitucional”. “É fruto de ideologia patriarcal e nutrida por avaro moralismo, mas, sobretudo, é um acinte aos direitos das mulheres”, diz.

Parlamentares tentam derrubar resolução no Congresso

“Por respeito aos médicos e médicas que atuam incansavelmente na defesa e garantia dos direitos das mulheres, por respeito à histórica luta das mulheres pela conquista de direitos e dignidade, essa resolução deve ser revogada”.

Nesta quinta-feira (4), a líder da federação Psol-Rede na Câmara, deputada Erika Hilton (PSol-SP) protocolou projeto de decreto legislativo (PDL) para derrubar a resolução. O objetivo é sustar a medida. “A resolução retira a possibilidade de interrupção da gravidez em casos de gestação acima de 22 semanas, mesmo em casos de abortamento que são previstos na legislação. Uma medida, portanto, ilegal e que agrava as violações de justiça reprodutiva, saúde integral e bem-estar das pessoas que gestam no país”, justificou a parlamentar.

Nesta quarta-feira (3) o Ministério Público Federal (MPF) cobrou explicações ao CFM. A entidade que tem como objetivo contribuir para promover o bem-estar da sociedade, disciplinando o exercício da medicina por meio de sua normatização e fiscalização, tem demonstrado o oposto. E trabalhou incansavelmente contra o programa Mais Médicos nos governos Dilma Rousseff (PT) e se juntou a Bolsonaro no negacionismo. Seja na recomendação da cloroquina comprovadamente ineficaz contra a covid e, mais recentemente, se engaja em campanhas contra vacinação infantil.

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