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Deputados da base aliada dizem que governo ‘aninha gays, índios e tudo o que não presta’

Ruralistas propõem que agricultores contratem seguranças e 'se vistam de guerreiros' para se defender de indígenas. Dizem ainda que ministro Gilberto Carvalho comanda 'vigarice orquestrada'

Agência Câmara

Para parlamentares, Gilberto Carvalho comanda ‘vigarice’ de demarcação de terras indígenas em Brasília

São Paulo – Vídeo publicado no YouTube hoje (12) mostra dois deputados da base aliada do governo no Congresso conclamando os produtores rurais do país a formar milícias para se defenderem dos povos indígenas que tentarem ocupar suas terras.

Os parlamentares criticam ainda o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, e seu assessor, Paulo Maldos, por aninharem “tudo o que não presta”, em referência a homossexuais e populações tradicionais do país. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), também é alvo dos parlamentares. Para eles, a entidade católica não tem nada de cristã e está a serviço de interesses estrangeiros.

As declarações foram feitas pelos deputados Luís Carlos Heinze (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS), membros da Frente Parlamentar Agropecuária, em 29 de novembro do ano passado, durante audiência pública da Comissão de Agricultura da Câmara na localidade de Vicente Dutra (RS), noroeste gaúcho, na divisa com Santa Catarina. Os parlamentares, pessoalmente ou por meio de sua assessoria, confirmaram a veracidade das imagens à RBA. Apenas Heinze quis comentar o teor das declarações.

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O vídeo começa com uma crítica direta de Luís Carlos Heinze ao ministro Gilberto Carvalho, em cuja pasta, afirma o deputado, “estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta está aninhado ali, e eles têm a direção e o comando do governo”. Alceu Moreira aparece em seguida, contestando a suposta “pressa” do governo federal na delimitação de terras tradicionais. “Por que será que de uma hora para outra tem que demarcar terras de índios e quilombolas?”, questiona o parlamentar.

De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), porém, a presidenta Dilma Rousseff é a que menos destinou territórios aos povos ancestrais brasileiros desde a redemocratização. Apenas 11 territórios foram homologados desde 2011, quando teve início o terceiro governo do PT. É menos do que as áreas delimitadas nos dois anos da administração de Itamar Franco: 16. O recordista em demarcações é Fernando Henrique Cardoso, que entre 1995 e 2002 homologou 145 áreas. O ISA afirma que mais de 700 territórios indígenas aguardam reconhecimento.

Esse desempenho contraria a Constituição Federal de 1988, que deu prazo máximo de cinco anos para que o Estado brasileiro demarcasse todas as terras indígenas no país. Atualmente, cerca de 13% do território nacional é composto por reservas e aldeias indígenas. No entanto, 98% desse montante fundiário está nas regiões Norte e no norte do Mato Grosso, onde se localizam metade da população indígena do país, que hoje é composta por cerca de 800 mil pessoas. A outra metade se espreme em pequenas porções territoriais no Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste e Sul.

Ainda assim, no vídeo, o deputado Alceu Moreira classificou a demanda por demarcação de “vigarice orquestrada”, que teria como “chefe” o ministro Gilberto Carvalho. Mas não só. “Por trás dessa baderna está o Cimi, que é uma organização cristã, que de cristã não tem nada”, continuou o parlamentar gaúcho, sob aplausos dos moradores de Vicente Dutra. “Está a serviço da inteligência norte-americana e europeia para não permitir a expansão das fronteiras agrícolas do Brasil.”

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Para Alceu Moreira (PMDB-RS), Cimi está a serviço dos EUA e Europa contra o agronegócio

Após esse diagnóstico, os dois deputados conclamam os produtores rurais à ação. “Se nós não fizermos nada, se vocês ficarem de braços cruzados, o que vai acontecer?”, provoca Luis Carlos Heinze, antes de sugerir que os gaúchos sigam o exemplo de agricultores de outros estados e se apressem na formação milícias de autodefesa. “No Pará, eles contrataram segurança privada. Ninguém invade no Pará porque a Brigada Militar (polícia) não lhes dá guarida lá, e eles têm que fazer a defesa das suas propriedades”, argumenta. “Por isso, pessoal, só tem um jeito: se defendam. Façam a defesa, como o Pará está fazendo, como o Mato Grosso do Sul está fazendo.”

A plateia mais uma vez aplaude. Alceu Moreira também seria ovacionado ao apresentar proposta semelhante. “Nós, os parlamentares, não vamos incitar a guerra. Mas lhes digo: se fardem de guerreiros e não deixem um vigarista desses dar um passo na tua propriedade. Nenhum! Nenhum!”, exortou. “Usem todo tipo de rede. Todo mundo tem telefone, liguem um para o outro imediatamente, reúnam verdadeiras multidões e expulsem do jeito que for necessário.”

Ódio

Procurado pela RBA, o secretário-executivo do Cimi, Cléber Buzatto, disse que recebeu as declarações com descrédito. “Lamentamos e repudiamos com muita força. É totalmente inverídica, falaciosa e mentirosa”, classifica. “Esse discurso é parte de uma estratégia da bancada ruralista para tentar deslegitimar e desqualificar os povos indígenas e seus apoiadores, com o intuito de favorecer o avanço do agronegócio contra o direito dos povos indígenas no Brasil. Assim, poderão se apossar e continuar explorando o território que pertence a esses povos.”

Buzatto também negou veementemente as insinuações de que o Cimi é um braço da inteligência internacional. “Fomos fundados em 1972, num período em que imperava a ditadura”, lembra. “Desde então, inclusive contra ditames do poder ditatorial, sempre lutamos para que os índios continuassem a existir enquanto tal, com suas próprias crenças e culturas, contrariamente ao que pregava o projeto nacional da ditadura, que era de assimilação e aculturação. Isso inviabilizaria a existência dos povos indígenas.”

O secretário-executivo do Cimi analisa que, graças à resistência dos índios e ao trabalho de instituições indigenistas, o país ainda pode se orgulhar da existência de 305 povos diferentes, que falam 274 línguas distintas em seu território. “É uma riqueza que o Brasil possui e que infelizmente ainda não valoriza adequadamente. Esperamos que passe a valorizar.”

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Luis Carlos Heinze (PP-RS) conclama produtores rurais a se armarem para vencer os índios assim como venceram sem-terras

De acordo com Buzatto, e diferentemente do que dizem os deputados ruralistas, a gestão da presidenta Dilma Rousseff comete dois “erros fundamentais” em relação à causa indígena. O primeiro deles é a paralisação dos processos de demarcação de terras no país, que, acredita, é fruto da pressão dos interesses do agronegócio. “Esse erro é um atentado contra a Constituição, que determina reconhecimento e demarcação de acordo com o Decreto 1.775, de 1996.”

O segundo equívoco, continua o secretário-executivo do Cimi, seria político. “Ao paralisar demarcação, o governo abre espaço, oportuniza, viabiliza e alimenta esse tipo de discurso de pregação ao ódio, racismo e incitação à violência contra os povos indígenas e outros setores da sociedade brasileira, discurso que também se volta contra o próprio governo e à própria presidenta.”

Buzatto avalia que posicionamentos de autoridades, como as expressas no vídeo, colocam em risco a vida não apenas dos índios, mas também dos pequenos agricultores. Ao pegarem em armas para se defender do movimento indígena, explica, eles apenas intensificam um conflito que já é naturalmente grave. “Essa tensão só beneficia os setores que esses deputados representam: o grande latifúndio e o agronegócio”, atesta o indigenista. “A demarcação garante indenizações e reassentamento aos pequenos agricultores. Mas os latifundiários querem evitar isso, porque, para haver reassentamento, o governo tem que desapropriar os latifúndios. E isso eles não querem.”

Oportunistas

Em entrevista à RBA, Luis Carlos Heinze baixou o tom das críticas que faz no vídeo. Disse que não é contrário a todos os indígenas do país, mas apenas a alguns poucos “caciques aproveitadores” que fazem conluio com a Fundação Nacional do Índio (Funai) e com o governo federal em benefício próprio. “Temos 22 mil índios no Rio Grande do Sul. Denunciei que alguns estavam arrendando terras para brancos. Uma terça parte da terra que eles têm está arrendada. Com isso, receberam R$ 20 milhões. Quem ganhou esse dinheiro? Foram todos os índios? Não, foi meia dúzia.”

O parlamentar utilizou argumento parecido para suavizar a pecha de “tudo que não presta” que colocara sobre gays, lésbicas, quilombolas e indígenas em seu discurso na cidade de Vicente Dutra (RS). “Não generalizo. Tenho até amigos que são ligados nisso aí, e que frequentam minha casa”, afirma. “Meu problema não são as milhares de pessoas que existem no país, mas os que comandam o processo.” E, de acordo com o parlamentar, quem comanda é mesmo o ministro Gilberto Carvalho.

Quanto à necessidade de autodefesa dos agricultores, Heinze repetiu as mesmas palavras que proferiu no interior gaúcho, e reafirmou a ideia de que os produtores rurais devem contratar segurança privada. Segundo o parlamentar, o Estado brasileiro não consegue garantir a inviolabilidade de suas terras. “Não é formar milícia, é contratar segurança”, diferencia. “É contratar gente para defender sua propriedade. Não colocam segurança em prédio? Então, é a mesma coisa. Se o Estado não protege, vai virar baderna.”

O deputado acredita que o governo pode fazer a reforma agrária e a demarcação de terra que quiser, onde quiser, desde que compre as terras que deseja destinar a índios e sem-terra. “O que não pode é invadir pra tomar na mão grande. Hoje o governo quer roubar”, explica. “Quer assentar um milhão de sem-terra, compra propriedade. Onde tu quiser tem área para vender.”

Finalmente, Heinze afirmou que a Constituição é clara ao estabelecer quais terras são passíveis de demarcação. “O texto diz ‘terra que tradicionalmente ocupam’, no presente, e não que ocupavam, no passado. Que ocupam. Eles distorcem a interpretação e só dá conflito”, comenta. “Aí dizem que não ocupam mais porque foram expulsos. Poxa, no Rio Grande do Sul há colonos há mais de cem anos na terra. Em 1900 não sei quantos índios tinham, nem onde. O que vamos fazer? Vamos embora todo mundo que tiver origem europeia?”

O presidente do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, Ricardo Izar Júnior (PSD-SP), afirmou à RBA que as declaração de seus colegas podem acarretar numa representação ao colegiado. “Sem dúvida. Temos casos parecidos em andamento”, afirma, citando o exemplo do deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), que teve em seu currículo afirmações discriminatórias contra negros e homossexuais. “O processo pode acarretar desde chamadas verbais e suspensões até a perda de mandato.”

Izar Jr. afirma, porém, que nenhum membro do Conselho de Ética pode ser autor da representação. “Não podemos denunciar e investigar ao mesmo tempo. Isso seria ferir a isonomia”, pontua. “Temos que ser provocados.” O deputado diz que representações ao grupo podem ser feitas por qualquer cidadão, parlamentar, partido ou bancada do Congresso. “Até agora não chegou nada.” Quando e se chegar, o conselho terá 90 dias para apurar o caso e estipular ou não punições.

Procurado pela RBA, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, não atendeu à reportagem