Resistência

Em Brasília, indígenas protestam contra minuta de portaria sobre demarcações

Proposta do Ministério da Justiça pretende autorizar participação de 'todos os interessados' no processo de demarcações de terras. Lideranças são contra

Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Os presentes à Conferência de Saúde Indígena vão protestar na Esplanada dos Ministérios

São Paulo – Cerca de 1.700 representantes das etnias brasileiras que participam da Conferência Nacional de Saúde Indígena, em Brasília, devem realizar na capital, na manhã de hoje (4), uma manifestação pública contra minuta de portaria do Ministério da Justiça que pretende modificar algumas regras para demarcação de terras no país. Eles preveem que o texto vai emperrar o processo, que já é demorado, impossibilitando o reconhecimento de novos territórios e acirrando conflitos. O documento foi apresentado na última quinta-feira (28) aos parlamentares da bancada ruralista no Congresso, que exigiam do governo a elaboração de uma nova política de demarcações. Lideranças indígenas também tiveram acesso à minuta.

“Repudiamos esta outra medida de afronta grosseira ao direito originário dos nossos povos às terras que tradicionalmente ocupam, postergando, mais uma vez, indefinidamente, o dever do Executivo de demarcar e proteger essas terras, conforme determina a Constituição Federal”, afirma nota publicada ontem (2) pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), entidade que organiza o protesto em Brasília. “Submisso aos propósitos do latifúndio, do agronegócio e de outros capitais interessados nos territórios indígenas e suas riquezas, o governo Dilma Rousseff confirma, com esta medida, se efetivada, seu viés anti-indígena.”

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A minuta da portaria regulamenta o Decreto 1.775, de 1996, que dispõe sobre os procedimentos para demarcação de terras indígenas no país. Pelas regras atuais, todo o poder de decisão sobre reconhecimento dos territórios pertence ao Executivo, por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério da Justiça e da Presidência da República. São basicamente três etapas: a Funai realiza os estudos antropológicos, históricos, ambientais e fundiários, e produz um relatório. Se aprovado, o documento é remetido ao ministro, quem deve assinar uma Portaria Declaratória atestando que efetivamente se trata de uma terra indígena. Finalmente, cabe ao chefe de Estado homologar o território.

Entre a aprovação do estudo pela Funai e a análise do Ministério da Justiça, há um prazo de 90 dias para contestações. “Poderão os estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório”, diz o artigo 2º do decreto.

Para indígenas e antropólogos, esse prazo é suficiente para contemplar as contestações e observar o direito ao contraditório. Para produtores rurais, não. Aliás, uma das maiores exigências da bancada ruralista é ter voz ativa no processo de demarcação de terras – e não apenas uma janela para contestá-la. Os membros da Frente Parlamentar Agropecuária veem uma espécie de “ditadura da Funai”, cujos servidores, radicais, estariam tirando terras dos agricultores, que sustentam a balança comercial do país, e entregando aos índios, que já têm terras demais e não contribuem para o desenvolvimento nacional. Esse posicionamento tem sido endossado publicamente pela ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann.

Em 2013, a bancada ruralista iniciou uma ofensiva parlamentar para restringir e dificultar o processo de demarcação de terras. Para os produtores rurais, as demarcações – e não as injustiças históricas contra os povos tradicionais – estão no cerne do conflito entre indígenas e não indígenas no campo brasileiro. Por isso, ao longo do ano, pressionaram pela aprovação de diversas iniciativas parlamentares, como o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227, de 2012, e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 237, de 2013. A grande aposta da frente agropecuária, no entanto, é a PEC 215, de 2000, que pretende dar ao Congresso a palavra final sobre demarcações de terras indígenas no país.

As propostas legislativas contra os direitos indígenas provocaram uma reação em lideranças, povos, entidades e ONGs que se dedicam à defesa das populações tradicionais. Entre os dias 30 de setembro e 5 de outubro, as organizações ligadas à Apib promoveram uma semana de Mobilização Nacional Indígena, com protestos em pelo menos quatro capitais. Houve corpo a corpo com parlamentares e audiências públicas em Brasília. Em São Paulo, índios interromperam o tráfego na Rodovia dos Bandeirantes e marcharam pela Avenida Paulista.

Por enquanto, a pressão indígena tem conseguido frear a tramitação de PECs e projetos de lei no Congresso. Daí que a portaria do Ministério da Justiça tem sido vista pelo governo como uma das saídas menos traumáticas ao impasse. Com o texto, o Executivo abriria mão das medidas legislativas que tanto incomodam os índios, descontentes com o pífio desempenho da presidenta na demarcação de terras e com medidas desfavoráveis aos seus direitos. Por outro lado, agradaria os ruralistas no Congresso, sustentando a ampla aliança que mantém a base de apoio à presidenta Dilma Rousseff.

Em seus mais de 30 artigos, a minuta aparentemente não impinge grandes mudanças ao processo de demarcação. Ao contrário do que pretendia a PEC 215, o Executivo continua à frente do processo. No entanto, como queria o PLP 227, o texto autoriza a participação de outras entidades nos estudos. “É assegurado aos membros da comunidade científica, às entidades civis e a quaisquer interessados, o acompanhamento do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, desde que não interfiram de modo a perturbar ou impedir o seu regular processamento”, diz o artigo 28.

Antropólogos e indígenas acreditam que as novas regras poderão travar os trâmites para demarcação. “Se a demanda por demarcação passar por três fases de ‘morte súbita’ sucessivas, ela desaguará na criação de um grupo de trabalho, que poderá ter até 15 membros ‘oficiais’, fora os assistentes que poderão ser nomeados por qualquer interessado”, explica Raul do Valle, coordenador de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), em texto publicado na página da ONG. “Como já há grupos de trabalho que estão em funcionamento há mais de oito anos, tudo indica que, com essa alteração, os processos vão se eternizar.”

Valle argumenta que o inchaço dos grupos técnicos terá efeito contrário ao desejado pelo governo – que, oficialmente, advoga pelo fim da judicialização dos processo de demarcação. “Com tanta gente integrando o processo, a possibilidade de tantas posições divergentes e tantas fases a serem vencidas, será mais provável a ocorrência de pequenos vícios formais, que farão a alegria de qualquer um que queira travar o processo”, continua, apontando um aumento da burocracia para novas demarcações. “É um tipo de regra feito para não ser cumprido. Talvez propositalmente.”

Apesar de receberem com alegria a minuta do Ministério da Justiça, representantes da bancada ruralista também têm críticas ao texto. “Temos aí maior transparência no processo, participação maior dos entes federados. Também se criou câmara de conciliação”, festeja o deputado federal Jerônimo Georgen (PP-RS), em entrevista publicada em sua página na internet. “O lado negativo é que quem envia o relatório continua sendo a Funai. Como lado realmente negativo é que a Funai ainda tem papel principal da execução, julgamento e da realização do laudo antropológico.”

Há duas semanas, em audiência pública na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, ao anunciar que a portaria já estava pronta, afirmou que o governo está disposto a ouvir sugestões de todos os interessados, mas que irá baixar a norma com ou sem acordo. Para Cardozo, a minuta da portaria é importante porque dará ao ministro “uma estrutura que lhe permitirá fazer a mediação do conflito antes mesmo do relatório inicial ser baixado pela Funai, como também permitirá a ele um reexame técnico, pela sua própria estrutura, das contestações e impugnações que são apresentadas, coisa que hoje não é feita.”

A Constituição de 1988 ordenava que o poder público a demarcação de todas as terras indígenas do país num prazo máximo de cinco anos. Mais de 25 anos se passaram e, segundo dados do ISA computados em 2011, o país ainda tem um passivo de 723 territórios a serem reconhecidos, regularizados e delimitados pelo Executivo.

Atualmente, as demarcações abrangem cerca de 13% do país. No entanto, 98% das terras demarcadas se encontram na região Norte, onde vive aproximadamente metade dos índios brasileiros. A outra metade se espalha pelo restante do país, que abriga apenas 2% dos territórios reconhecidos. Além de problemas culturais e humanitários, como pobreza e desnutrição, a falta de espaço tem lançado as etnias do Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste numa situação de conflito permanente com produtores rurais pelo acesso à terra.

A pressão econômica é uma das principais responsáveis pela lentidão na demarcação de terras indígenas no país. Não por coincidência, os estados que mais registram embates entre latifundiários e indígenas também ostentam altos níveis de produção agropecuária: Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul, sobretudo com as populações guarani. Há ainda sérios problemas na Bahia, com os tupinambá. São Paulo é a unidade da federação que abriga a menor aldeia do país: a Terra Indígena Jaraguá, na zona norte da capital, com apenas 1,7 hectare.

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