Causa indígena

Supremo decide que condicionantes em demarcação só valem para Raposa Serra do Sol

Voto do relator Luís Roberto Barroso foi acolhido pela maioria dos ministros. Tribunal manteve as 19 salvaguardas estabelecidas durante reconhecimento da terra em Roraima

Nelson Jr/STF

O STF avaliou que não há como estender as decisões sobre a reserva de Roraima de maneira automática

São Paulo – O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou hoje (23) os embargos declaratórios que questionavam as 19 condicionantes elaboradas pelos ministros da mais alta corte do país quando, em 2009, referendaram a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A reserva se localiza em Roraima, na região fronteiriça entre Brasil, Venezuela e Guiana. Todos os envolvidos na questão – Ministério Público, fazendeiros, índios e estado de Roraima – haviam movido recursos contestando ou pedindo esclarecimentos sobre as condicionantes.

O julgamento dos embargos declaratórios da Terra Indígena Raposa Serra do Sol provocou grande expectativa entre ONGs, latifundiários, índios e governo federal, pois havia chances de que o Supremo pudesse transformar a decisão em uma espécie de jurisprudência para novas demarcações. Se fosse assim, a definição de novos territórios deveria obrigatoriamente obedecer às 19 salvaguardas, que não estão previstas em lei, mas que, ancoradas no acórdão do STF, teriam de ser respeitadas por todos os tribunais do país.

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Essa possibilidade foi afastada pelo relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, cujo voto foi acompanhado pela maioria dos colegas. “A opção que o tribunal tomou para decidir a demarcação não produz transformação da coisa julgada em ato normativo geral para outros processos que discutam matéria similar”, argumentou o magistrado, elogiado pelos demais juízes. “As decisões do STF não possuem sempre e em todos os casos caráter vinculante. A presente ação tem por objeto tão somente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.”

Barroso considerou, porém, que a decisão tomada pela corte, como costuma ocorrer, poderá ser utilizada como baliza para novos julgamentos sobre demarcações. “A ausência de vinculação formal não tem impedido que a jurisprudência da Corte tenha construído normas constitucionais, estabelecendo diretrizes aos demais juízes e órgãos”, ponderou. “Tendo a Corte enunciado sua compreensão acerca da matéria, é apenas natural que esse pronunciamento sirva de diretriz para as autoridades que venham a enfrentar novamente a questão.”

Redemarcação

O relator também afastou a possibilidade de que a Raposa Serra do Sol seja passível de novas demarcações no futuro. O veto às demarcações sucessivas é uma das condicionantes definidas pelo STF em 2009. “O instrumento da demarcação previsto no artigo 231 da Constituição não pode ser empregado em sede de revisão administrativa para ampliar terra já reconhecida, submetendo todo espaço adjacente a permanente insegurança jurídica”, decidiu Barroso, pontuando que essa possibilidade deixaria em permanente apreensão toda a comunidade instalada nos arredores do território indígena.

Para Barroso, a decisão não significa que a extensão de Raposa Serra do Sol não possa ser ampliadaEsse entendimento, porém, não significa que Raposa Serra do Sol não possa ter seus limites expandidos ao longo do tempo. Barroso lembrou que a condicionante proíbe apenas que a reserva cresça com base no estatuto da demarcação. “Nada disso impede que a área sujeita a uso pelos índios seja aumentada por outros instrumentos do Direito. Os índios podem adquirir imóveis e terão todo direito e poder de proprietários. A União também pode obter domínio da terra, seja pela compra, seja pela desapropriação.”

Outra condicionante que causava apreensão era a que descartava a necessidade de consulta prévia aos índios da Raposa Serra do Sol quando o poder público quisesse instalar bases militares ou realizar obras de interesse público na área. Há um aparente choque de interesses entre o texto constitucional e a Convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho (OIT), absorvida pela legislação brasileira. Ambas dizem que os índios devem ser consultados previamente. Mas a Constituição também garante o “relevante interesse público da União” sobre a reserva.

Consulta

Barroso encontrou uma espécie de meio termo à querela, com a balança pendendo para o lado do Estado. O ministro considerou que temas estratégicos para o país, como é o caso da defesa nacional, não precisam passar por consulta prévia nem dos indígenas nem de ninguém. “Se questões estratégicas justificam até mesmo aplicação de sigilo à informação, é natural que possam prescindir de prévia comunicação a quem quer que seja, incluídas as comunidades indígenas”, determinou, atendendo pleito dos militares.

O magistrado afirmou, porém, que obras de infraestrutura sim devem passar pelo crivo dos índios. “O acórdão não sugere nem poderia sugerir que a expressão ‘defesa nacional’ possa ser usada como rótulo para qualquer tipo de fim apenas para afastar a participação dos indígenas”, salientou. “O planejamento das operações militares não envolverá necessidade de prévia consulta. Situação inversa terá a construção de uma estrada, por exemplo. Caberá ao Judiciário fazer valer a Convenção da OIT. Na maioria dos casos, a comunidade deve ser ouvida.”

No entanto, Barroso insistiu que as comunidades indígenas não podem ter o poder de barrar a execução das obras de interesse público dentro da Raposa Serra do Sol. “O direito dos índios é ser ouvidos e ver seus interesses serem considerados. Mas a decisão final não depende apenas de sua aquiescência”, sopesou. “Nenhum indivíduo ou grupo tem direito de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é essa prerrogativa que a Constituição atribui aos índios.”

Finalmente, o relator analisou as condicionantes que proibiam aos índios realizar qualquer tipo de mineração na Raposa Serra do Sol. Barroso foi sucinto. Disse que os índios realmente não poderiam realizar qualquer tipo de atividade econômica relacionada à extração de minérios, mas que teriam todo o direito a realizar modalidades rudimentares de mineração ligadas às suas tradições. “Não se pode confundir mineração como atividade econômica com aquelas formas tradicionais de extrativismo praticada imemorialmente, nas quais a coleta constitui expressão cultural e elemento de modo de vida das comunidades indígenas.”

Divergências

Houve apenas duas divergências pontuais aos votos de Luís Roberto Barroso. Os ministros Marco Aurélio Mello e Joaquim Barbosa, presidente da Corte, eram favoráveis à derrubada de todas as 19 condicionantes porque acreditam, como muitos juristas brasileiros, que elas extrapolam as atribuições constitucionais do Supremo. No entendimento dos magistrados, ao estabelecer as condicionantes, o tribunal foi “criativo demais” e assumiu o papel de legislador – prerrogativa que cabe apenas a deputados e senadores.

“Talvez o Congresso não fosse tão criativo na estipulação do que deve ser observado em termos do gênero terras indígenas”, criticou Marco Aurélio Mello. “Acabamos por introduzir no cenário normativo normas que somente poderiam vir à baila mediante atuação dos congressistas. O Supremo substituiu ao Congresso Nacional, atuando talvez no vácuo deixado pelo mesmo Congresso. E o fez abandonando a postura que se aguarda do Judiciário.” Joaquim Barbosa complementou o colega: “O tribunal extrapolou, traçou parâmetros excessivamente abstratos e completamente alheios ao que foi proposto na ação originariamente.”

Barroso não se irritou com o entendimento contrário dos colegas. Pelo contrário, se disse aliviado com o voto de Barbosa e Marco Aurélio, porque interpretações semelhantes haviam aparecido com força na sociedade. “Teria sido ruim se não tivessem sido vocalizadas por alguém.” O relator, porém, lembrou que a criatividade do Supremo em 2009 viabilizou a demarcação e o apaziguamento dos conflitos. “Se o tribunal não tivesse feito do modo como fez, a execução do julgado não teria sido concretizada. É uma decisão atípica. Não acho que o tribunal deve fazer isso rotineiramente. Mas, nesse caso, decidiu o sistema.”

Antes que a sessão fosse encerrada, Barroso lembrou que a situação na Raposa Serra do Sol parece estabilizada e que o Supremo deveria se retirar da questão. “Em junho de 2009 já não havia mais nenhum não índio na região. Não houve necessidade de nenhuma prisão. A maior parte dos retirantes já sacou os valores depositados pela Funai a título de indenização por benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. O conflito federativo também já está solucionado”, enumerou. “Transitado em julgado esse acórdão, a jurisdição do Supremo neste caso em particular está exaurida. Os novos conflitos serão resolvidos localmente.”

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