Demarcações

Índios guarani vão à Avenida Paulista defender direitos ameaçados por ruralistas

Protesto reforça reivindicações apresentadas durante fechamento de rodovia na semana passada: contra projetos que enfraquecem Funai e pela demarcação de terras em São Paulo

Leo Martins/Frame/Folhapress

Os indígenas entendem que transferir atribuição da Funai ao Congresso é jogar pá de cal sobre demarcações

São Paulo – Cerca de quatro mil pessoas marcharam pacificamente hoje (2) pela Avenida Paulista, na zona sul da capital, para pedir o arquivamento de projetos de lei em tramitação pelo Congresso e que ferem os direitos indígenas e quilombolas garantidos pela Constituição. Os manifestantes também exigem a demarcação de duas terras guaranis localizadas dentro dos limites da cidade de São Paulo e outra, no litoral do estado. Apenas uma pessoa foi presa.

O grupo se concentrou por volta das 17h no vão livre do Masp e seguiu até o Monumento às Bandeiras, nas proximidades do Parque Ibirapuera, diante da Assembleia Legislativa. O destino da passeata não foi escolhido ao acaso: assinada pelo modernista Victor Brecheret, a imensa escultura homenageia os bandeirantes, figuras históricas cultuadas em São Paulo, mas que os guarani identificam como “assassinos de índios”.

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Aproximadamente 1.200 indígenas e quilombolas residentes no estado encabeçaram a marcha, que chegou ao fim perto das 21h. Eles subiram no monumento e estenderam faixas com os dizeres “guarani resiste” e “demarcação já”. No final, todos os manifestantes deram as mãos e formaram um círculo em volta da escultura. Outra ação simbólica pôde ser observada algumas horas antes, ainda na Avenida Paulista, em frente ao Parque do Trianon, quando manifestantes jogaram um pano preto com motivos indígenas sobre a estátua do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, conhecido como Anhanguera, que em guarani significa “diabo velho”.

“Os guarani estão na luta pelo direito à demarcação das nossas terras”, resumiu à RBA Adolfo Vera Miri, 48 anos, liderança indígena da aldeia Rio Silveira, em São Sebastião, litoral norte do estado. “Sem terra, índio não tem vida, não tem educação, não tem futuro. Índio não pensa explorar riquezas materiais: não quer explorar madeira, não faz mineração. Isso é uma ilusão do branco, que quer ficar rico. Índio apenas quer viver na terra e sobreviver da natureza. Nas ruas, estamos mostrando ao governo que estamos vivos e estamos resistindo a esse massacre e desrespeito aos direitos indígenas. Precisamos mostrar ao mundo que também temos força pra lutar.”

Reivindicações

A manifestação de hoje reforça as reivindicações apresentadas pelos guarani na última quinta-feira (26), quando cerca de 200 indígenas que residem em aldeias do município de São Paulo interromperam o trânsito na Rodovia dos Bandeirantes, sentido capital, na altura do km 20, por volta das 6h40. Na beira da estrada fica a menor terra indígena do Brasil: a Terra Indígena do Jaraguá, um dos territórios guarani da cidade que já foram reconhecidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e que esperam pronunciamento do Ministério da Justiça e da Presidência da República para serem demarcadas.

Em processo semelhante de tramitação está a Terra Indígena Tenondé Porã, localizada na zona sul de São Paulo, na região de Parelheiros. A Tenondé Porã também já recebeu parecer favorável da Funai para demarcação, inclusive com ampliação de seus limites territoriais, muito reduzidos para, como reza a Constituição, permitir a reprodução física e cultural das comunidades guarani. O próximo passo seria a publicação de um documento chamado Portaria Declaratória, em que o ministro da Justiça reconhece a área.

O documento já está sobre a mesa do titular da pasta, José Eduardo Cardozo, esperando assinatura. Os estudos de viabilidade da Terra Indígena Tenondé Porã chegaram ao gabinete ministerial em abril do ano passado; os do Jaraguá, há mais de quatro meses. Cardozo também já tem em mãos os pareceres positivos da Funai sobre outro território guarani em São Paulo: a Terra Indígena Boa Vista do Sertão de Promirim, em Ubatuba, litoral do estado.

Tanto a manifestação da Avenida Paulista quanto o fechamento da Rodovia dos Bandeirantes foram organizados pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização política que congrega representantes do povo guarani nas regiões Sul e Sudeste. Por isso, a demarcação da uma área no Rio Grande do Sul também entrou na pauta de reivindicações: a Terra Indígena Irapuá, em Caçapava do Sul, no sul gaúcho.

Mobilização

A marcha dos guarani pela Avenida Paulista faz parte da semana de Mobilização Nacional Indígena, organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Iniciada na segunda-feira (30), a jornada de lutas se estenderá até sábado (5) com manifestações em quatro capitais, inclusive Brasília, além de outras ações pelo país. Os protestos contam com apoio de ONGs indigenistas e ambientalistas, além de movimentos sociais, como o Passe Livre.

Os indígenas brasileiros estão indo para as ruas na tentativa de barrar projetos de lei que atentam contra os direitos dos povos tradicionais garantidos pela Carta Magna de 1988. O principal alvo das manifestações é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que pretende transferir para o Congresso Nacional a palavra final sobre demarcação de terras indígenas e quilombolas. Atualmente, todo o processo fica a cargo do Executivo, que, se seguisse o texto constitucional, deveria ter demarcado todas as áreas tradicionais do país antes de 1993.

Apresentada em 2000 pelo deputado Almir Sá (PPB-RR), a matéria teve sua tramitação acelerada nos últimos meses por iniciativa dos parlamentares da bancada ruralista: deputados e senadores que defendem os interesses do agronegócio, e que são considerados pelos povos indígenas como os “bandeirantes de hoje” – por isso, em vários momentos durante a manifestação de hoje foi possível ouvir gritos como “ruralista assasino, seu direito mata índio”. As populações tradicionais acreditam que oferecer ao Legislativo a prerrogativa de deliberar sobre as demarcações seria colocar uma pá de cal sobre qualquer possibilidade de que novas áreas sejam homologadas no país.

Embora temporária, a Mobilização Nacional Indígena já colheu seu primeiro fruto: o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), decidiu ontem (1º) adiar para a semana que vem a instalação da comissão especial que analisará o conteúdo da PEC 215. O texto deve obrigatoriamente passar pelo colegiado antes de ir a plenário. Sem os protestos, o grupo provavelmente já estaria trabalhando.

Diálogo

Além da PEC 215, outro foco da manifestação na Avenida Paulista – e da mobilização nacional – é o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227, de 2012, elaborado por iniciativa do deputado ruralista Homero Pereira (PSD-MT). A matéria pretende regulamentar o artigo 231 da Constituição, que dispõe sobre a demarcação de terras indígenas, determinando, entre outras questões, que o processo de reconhecimento dos territórios ancestrais deverá contar com a participação de vereadores, promotores, secretarias de Agricultura e sindicatos, em audiência pública.

A proposta vai ao encontro das intenções do governo federal, que tem paralisado todos os processos de reconhecimento de novas terras indígenas em prol do diálogo com todos os setores sociais, políticos e econômicos “afetados” pelas demarcações. De acordo com a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, essa articulação evitaria que fazendeiros “prejudicados” pela instalação das terras indígenas recorressem à Justiça, atravancando a delimitação das áreas e acirrando os conflitos.

Não por coincidência, a gestão da presidenta Dilma Rousseff ostenta a pior média de demarcações em desde a redemocratização do país. Levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) mostra que apenas 11 territórios foram homologados pela petista, menos do que as áreas delimitadas nos dois anos da administração de Itamar Franco (1992-1994): 16 terras. O recordista em demarcações é Fernando Henrique Cardoso, que entre 1995 e 2002 homologou 145 áreas indígenas.

Na justificativa do PLP 227/2012, fica patente a defesa dos produtores rurais – principalmente dos monocultivos exportadores – frente ao “avanço” das terras indígenas e de áreas de preservação ambiental no Brasil. “Sem produção agrícola fica comprometida a segurança alimentar, que é direito de todos”, diz o texto. “O crescimento da população mundial tem, por consequência, gerado a necessidade do aumento da produção de mais alimentos, enquanto medidas ambientais necessárias vêm diminuindo as áreas de produção agrícola.”