Os pecados mortais do serviço secreto alemão: o ponto cego programado

Brasão do Verfassungsschutz, o órgão de inteligência interna do governo alemão: desorientação e pontos cegos confundem a identificação dos ‘inimigos’ Uma das falhas mais espetaculares do Bundesnachrichtendienst – a antiga […]

Brasão do Verfassungsschutz, o órgão de inteligência interna do governo alemão: desorientação e pontos cegos confundem a identificação dos ‘inimigos’

Uma das falhas mais espetaculares do Bundesnachrichtendienst – a antiga “Organização Gehlen”, nome de seu fundador – o que valeu a este provavelmente o começo de seu descenso nas preferências ocidentais – foi a de não prever a construção do muro de Berlim, em 1961.

Durante pelo menos dois meses o governo da Alemanha Oriental se ocupou em juntar materiais de construção, como arames farpados, mourões, tijolos, ferragens, depois placas de cimento armado, em locais estratégicos, sem que isso fosse percebido sequer como algo “estranho”, que merecesse alguma investigação que decifrasse o significado do que estava acontecendo.

Em agosto daquele ano o governo ocidental foi literalmente pego dormindo nas palhas, quando o muro começou de fato a ser construído. A ex-“Organização Gehlen” também. Hoje em dia, a interpretação mais aceita para esta cegueira fala de que ela só foi possível graças à complexidade e ao intrincado da estrutura que fora montada para, aparentemente, impedi-la: a extensa e complicada rede de infiltrações e informantes.

Como tudo tinha duplo sentido nessa rede, e uma grande parte dessas infiltrações eram de mão dupla, criou-se um verdadeiro “tumor interno” no serviço secreto, ou, se quiserem, um apertado “circuito interno” cujo efeito foi provocar um curto-circuito na veiculação das informações. Dito de outro modo, era relativamente fácil para um agente duplo ocultar informações, desviá-las, recobri-las com outros informes, tamanho era o volume de mensagens de vários sentidos que circulavam dentro dessa estrutura. Ela própria criou seus pontos cegos. Mais: ela mesma, rede, tornou-se um ponto cego, de difícil decifração.

O exemplo antigo vale para os tempos modernos, estendendo-se também ao órgão da vigilância interna, o Bundesamt für Verfassungsschutz. Sobretudo em relação aos grupos de extrema-direita que ele deveria vigiar. É verdade que houve uma ajuda externa, na construção desse novo ponto-cego. Após o 11 de setembro de 2001 todos os serviços secretos europeus – e o alemão não foi exceção – se viram arrostados pela ameaça, as vezes fantasmagórica, outras vezes não, do terrorismo islâmico.

Neste particular, pairava ainda sobre essa nuvem tempestuosa a “certeza” de que durante a Olimpíada de 1972, em Munique, o grupo palestino que assaltara o edifício que hospedava os atletas israelenses, com a tragédia catastrófica que se seguiu, recebera ajuda da extrema-esquerda alemã. Fora o contrário, hoje está comprovado: o grupo de terroristas recebeu sim ajuda interna na Alemanha – mas de partidários da extrema-direita, neonazis.

Os organismos ocidentais de inteligência sabiam disso desde sempre, mas, por conveniência ou sabe-se lá por que, deixaram a fama e a chama da conexão palestina/extrema-esquerda se alastrarem. Isso criou uma cortina de fumaça em torno da ação dos grupos mais violentos de extrema-direita.

Outra ajuda externa recebida veio da febre dos cortes no orçamento público. Como, supostamente, as atividades violentas de extrema-direita estavam em recesso, o setor financeiro do governo recomendou, e ganhou, contra o parecer do seu diretor, a junção num único departamento da vigilância à esquerda e à direita – com o consequente crescimento daquele e a diminuição deste.

Mas o principal fator da extrema-direita ter se tornado um ponto cego na vigilância do órgão de inteligência, veio de sua própria prática em relação a esses grupos: a infiltração e a arregimentação de informantes. Em primeiro lugar, isso facilitou a “chamada” de simpatizantes das ideias de extrema-direita para o exercício dessas funções.

Em segundo lugar, porque muitas vezes, para se tornarem aceitos, esses infiltrados passaram a agir de modo “mais realista do que o rei”. A tal ponto chegou essa confusão que não poucos juízes chamados a intervir, seja através de julgamentos, ou de autorização para investigações, declararem-se impossibilitados de qualquer ação, por não saberem mais sobre o que estavam se debruçando, se uma “autêntica” ação de extrema-direita, ou alguma “ação provocativa” de agentes do próprio governo nela infiltrados. Uma geléia geral.

Este é um dos fatores que ajuda entender o fenômeno da chamda “célula de Zwickau”, um grupo de neonazis que agiu impunemente, na clandestinidade, de 1998 a 2011, contabilizando dez assassinatos e vários outros atentados, além de assaltos a banco. Passaram despercebidos até fazerem um movimento em falso em novembro do ano passado e serem descobertos, quando dois deles morreram, aparentemente (pelo menos até agora) num pacto suicida.

Apesar das evidências contra eles se acumularem, as forças policiais jamais sequer os investigaram, tendo sua atenção continuamente desviada para uma suposta “máfia turca”, na verdade inexistente, que exploraria e eliminaria comerciantes.

Ficou evidente que este “ponto cego” só poderia ter sido construído de dentro do aparato policial. Agora, mais recentemente, a suspeita se confirmou: um funcionário de carreira do Verfassungsschutz foi denunciado como cúmplice do grupo. Já houve também agentes menores, de escritórios provinciais da organização, ou de forças policiais, denunciados por apoios do tipo fornecimento de armas ou dinheiro.

As investigações estão curso. O diretor da agência se demitiu, junto com alguns outros altos funcionários. Fala-se, por meio da mídia, de maior controle centralizado sobre as ações da agência. Sobre o método das infiltrações, no entanto, até o momento há apenas perguntas colocadas. Se ele será alterado, ainda nada se sabe ao certo.

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