Ainda os milicianos

Por que a ‘Festa da Selma’ não deu certo? Por Flávio Aguiar

Tão importante quanto discutir sobre os objetivos desta fracassada missão, é discutir por que, afinal, pelo menos em parte, ela fracassou

Eraldo Peres/SIC Notícias
Eraldo Peres/SIC Notícias

Berlim – “Festa da Selma” era o codinome da operação que devastou os prédios dos Três Poderes da República em Brasília, entre seus oficiantes. Assim as caravanas de ônibus foram convocadas, dos quatro pontos cardeais do país, para convergirem sobre a capital, onde seus ocupantes deveriam fazer o que fizeram.

Acontece que eles fizeram o que deveriam apenas em parte. Com a conivência da PM e dos comandos do Exército, nem que seja pela omissão, semearam o caos na Praça dos Três Poderes. Mas isto deveria ter levado a uma intervenção militar que afinal não veio. E tão importante quanto discutir sobre os objetivos desta fracassada missão, é discutir por que, afinal, pelo menos em parte, ela fracassou.

Bom, como estamos no Velho Mundo, cabe assinalar que, em primeiro lugar, ela não teve apoio nem neste nem no Novo Mundo. O apoio ao governo Lula foi quase universal.

De Maduro, na Venezuela, a Giorgia Meloni, na Itália; de Biden a Putin; de Macron a Xi Jin-Ping; da Autoridade Palestina a Netanyahu; do Canadá a Austrália e muito mais, ninguém apoiou o golpe ou ficou neutro: o apoio foi maciço, amplo, geral e irrestrito à “democracia brasileira”.

Desta vez Trump silenciou. Steve Bannon, que antes elogiara a resistência de Bolsonaro e dos bolsonaristas em reconhecer a derrota na eleição como “A Primavera Brasileira”, desta vez ficou em silêncio obsequioso. Por quê? Talvez pela incompetência do golpe e por seu caráter que desembocou em vandalismo puro. Além de que Bolsonaro, família, milícias e companhia cheiram a crime organizado e desorganizado por detrás. 

Mas sem dúvida houve mais. Até uma certa hora, os arruaceiros candidatos a golpistas reinavam impunes na Praça dos Três Poderes, com apoio ou omissão da PM e dos comandos do Exército em Brasília, como já disse, nem que seja por omissão. De repente tudo se inverteu. Apareceu a antes ausente Tropa de Choque e esvaziou os prédios em 60 minutos.

A horda refluiu e se escondeu sob a asa dos blindados e caminhões do Exército na frente do QG. Mas na manhã seguinte o mesmo Exército que os protegia ajudou a PM e enfia-los nos ónibus que os trouxeram para Brasília, agora transformados em camburões que os levavam para a prisão na sede da PF, que semanas antes tinham tentado invadir.

Houve uma tentativa de adesão nacional? Houve. Aconteceram ensaios de bloqueios em estradas e ameaças de invasão de refinarias. Na véspera um grupo aloprado tentou bloquear o acesso ao aeroporto de Congonhas em São Paulo e houve tentativa de sabotagem contra a rede elétrica em diferentes pontos do país. Para este assalto à rede elétrica é necessário ter inteligência e informação que só grupos especializados, por exemplo, nas FFAA, têm.

Mas tudo falhou. E o golpe refluiu. Seus defensores estão hoje na defensiva. Não nos iludamos: o acontecido pode ter sido um ensaio geral. Mas mesmo como ensaio ele foi um fracasso. Evidenciou mais fragilidade e desconcerto do que força e concatenação.

Faltou-lhe, é certo, comando e liderança. O falastrão de Orlando não é uma liderança. Não tem apoio internacional e seu apoio nacional está se esvaziando rapidamente, ficando reduzido ao grupo de fanáticos religiosos e alucinados que o incensam, além dos milicianos. Estes poderão muito bem mudar de líder se assim lhes convier, mais cedo do que os fanáticos carolas ou os anti-comunistas fardados.

Por outro lado, o governo Lula agiu com muito acerto e sobriedade. Não deixou se empolgar para que decretasse uma GLO de efeito duvidoso, nem liberou a tropa para reprimir com uma violência que poderia dar aos fascistas um almejado cadáver. Na falta deste, tentaram improvisar uma senhora idosa que teria morrido na prisão, mas nem isto funcionou. Xandão, mais uma vez, agiu como cirurgião, cortando onde deveria,  na carne e no cerne da baderna. Omissos e cúmplices estão hoje destituídos ou com prisão decretada. Os petulantes arruaceiros se transformaram em chorões acovardados.

Mas houve algo mais

E aqui parto para o terreno incerto das conjeturas. É claro que havia, por detrás de tudo, além dos financiadores do Agro e do Ogro, estrategistas de coturno e farda. E há uma tradição castrense no Brasil, em matéria de golpes de Estado, pelo menos desde 1945. A certa altura dos acontecimentos contam-se generais e coronéis, almirantes e brigadeiros, blindados, aeronaves e corvetas de um lado e de outro.

Feita esta contabilidade, decide-se a parada sem que se dispare um tiro. Foi assim em 55, quando Lott deu o contra-golpe, em 61, quando houve o empate técnico da emenda parlamentarista, em 64, quando o “dispositivo militar” do general Assis Brasil derreteu, e no episódio Geisel vs. Sylvio Frota. Não descarto a possibilidade de que os que, desde dentro da caserna, almejavam o golpe, tenham feito esta contabilidade e que ela lhes tenha sido desfavorável.

Além disto, está claro que a burguesia brasileira não namora mais Bolsonaro, a não ser a parte mais ardida e retrógrada dela, concentrada em setores do Agro e nesta espécie de lumpen-empresariado que progrediu com o Ogro.

De mais a mais, o establishment militar norte-americano não aprova golpes manu-militari na América Latina desde a Guerra nas Malvinas, pelo menos. E o establishment financeiro mundial não está disposto a pagar para não ver resultados com a incompetência faraónica de Paulo Guedes e milicianos em anexo.

Convenhamos: esta minha hipótese, si non é vera, é ben trovata…


Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo)