Prisioneiros da guerra

Guerra na Ucrânia, um ano, e possibilidade remota de se conter matança no curto prazo

Os senhores da guerra são também prisioneiros de suas palavras. E, de momento, não têm como sair da cumbuca em que meteram suas mãos

Pixabay
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“Nós precisamos vencer o Golias russo.” Com estas palavras o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, definiu o papel de seu país e do governo da Ucrânia na guerra que nesta sexta-feira (24) completa um ano, primeiro ano de vida e mortes. Zelensky fez seu discurso durante a abertura da Berlinale, o Festival Internacional de Cinema da capital alemã, na noite de 16 de fevereiro. E no encerramento de sua fala de 10 minutos, reiterou a imagem, repescando uma expressão do tempo da Guerra Fria entre capitalismo e comunismo. “Nós todos somos o Davi do Mundo Livre.”

Dessa forma explicitou o meta-discurso que acompanha o desempenho de suas Forças Armadas no campo de batalha. Meta-discurso: a referência retórica que projeta no campo de valores éticos e até estéticos aquilo que acontece no mundo real. No caso, o conflito que vem sendo descrito como o mais cruento na Europa desde a Segunda Guerra. Apesar das atrocidades cometidas por todos os lados na chamada Guerra Civil Iugoslava, entre 1991 e 2001.

Assim, o esforço retórico para enquadrar a atuação do governo de Kiev na moldura bíblica evoca comparações curiosas. Na narrativa sagrada para os cristãos, o pastor de ovelhas Davi vence o gigante Golias porque tem por trás de si a força de Jeová, o Senhor dos Exércitos de Israel, por ele invocada.

Volodymyr Zelenski, que se projeta como Davi, tem por trás de si todo o peso do Ocidente ressuscitado. Estados Unidos, Reino Unido, Otan e União Europeia lhe fornecem bilhões de dólares e euros em armamentos.

Seu esforço retórico é o de convencer o mundo de que ao lado da força das armas por que implora continuamente, ele conta com a força superior da razão e da ética, o que lhe concede uma dimensão histórica e messiânica.

Do lado russo, o esforço não é menor. Vladimir Putin tem diante de si o desafio de transformar a invasão de outro país num gesto defensivo, o que também exige uma certa certa cabriola discursiva. A referência buscada é a da Grande Guerra Patriótica, como é descrita, desde os tempos da finada União Soviética, a resistência custosa em termos de vidas, mas bem sucedida ao então invasor nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.

A referência à “desnazificação” da Ucrânia é constante, projetando uma proteção histórica e grandiosa da ameaçada “Mãe Pátria”, batizando com tintas de heroísmo nacional a ocupação da zona fronteiriça da Ucrânia, para a salvaguarda de sua população, e também a reanexação da península da Crimeia, que já fora russa no passado, até os anos 1950. Até hoje ninguém entendeu o porquê de o então primeiro-ministro soviético Nikita Kruschev ter doado o território à Ucrânia.

Acontece que as palavras não são neutras, elas cobram seu preço. Davi não pode perder para Golias; nem mesmo a possibilidade do empate lhe é concedida. Se ele não matasse o gigante, ficaria desmoralizado perante o rei Saul, perante Israel, perante seus irmãos e seu pai Jessé, e também perante Jeová. Se Kiev não “vencer a guerra”, como hoje se apregoa no Ocidente, ela não passará de uma aventura que torrou recursos bilionários e contribuiu para devastar um país.

Do outro lado, a Pátria Grande também não admite concessões, nem empates tampouco. Somente a vitória garante a sua integridade. Se a Rússia não “vencer”, de algum modo “a guerra”, ela também não passará de uma invasão desnecessária que devastou um país vizinho e sacrificou a vida de milhares de seus soldados e civis do outro lado.

guerra ucrânia um ano

Temos assim uma guerra em que tanto quanto senhores, os envolvidos nela são prisioneiros de suas palavras. E de momento não têm como escapar desta cumbuca em que meteram suas mãos.

O que significa a palavra “vitória” para Volodymyr Zelensky e seus aliados? Expulsar os russos dos territórios ocupados a partir do começo da guerra, em 24 de fevereiro de 2022? Reconquistar a Crimeia? Afundar a economia russa e derrubar Vladimir Putin? Qualquer destes objetivos parece hoje muito difícil de atingir.

E para Vladimir Putin, o que significa a palavra “vitória”? A Rússia parece não ter condições de ocupar a Ucrânia, nem política, nem econômica, nem militarmente. Derrubar Volodymyr Zelensky parece estar fora de alcance. Manter os territórios ocupados como um tampão para proteger a Crimeia, onde tem bases militares e navais? Mesmo esses últimos objetivos envolvem um custo enorme para a economia do país, acossada pelas sanções econômicas, apesar da asa protetora da China, embora esta pareça reservadamente crítica em relação à guerra.

É claro que tudo pode mudar de uma hora para outra. Mas de momento a possibilidade de deter a matança no curto prazo parece muito remota. Usamos a palavra porque uma guerra sempre envolve a promoção de uma enorme matança.

Isso nos lembra a sabedoria antiga das palavras de um ditado muito popular no nosso Brasil: “Macaco velho não mete a mão em cumbuca”.


Flávio Aguiar é jornalista e escritor, é professor aposentado de Literatura Brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do Mundo ao Revés (Boitempo).