Na saída de Gilmar Mendes, juiz aponta risco de ‘tendência arbitrária’

Opiniões emitidas pelo presidente do STF podem ser positivas, mas destoam da tradição dos que ocuparam o posto antes. Problema maior é risco à autonomia de magistrados

Críticas a “atropelos” às leis e participação em polêmicas marcaram gestão de Gilmar Mendes, na visão de juízes (Foto: Gil Ferreira/SCO/STF)

São Paulo – Gilmar Mendes deixou a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta sexta-feira (23), dando lugar a Cezar Peluso. A gestão de Mendes na mais alta corte do país e no Conselho Nacional de Justiça foi marcada por polêmicas e críticas. Acostumado a emitir opiniões sobre temas sensíveis em pauta no país, ele esteve no centro de discussões e decisões consideradas partidarizadas pelos críticos. Algumas medidas consideradas arbitrárias e que restringem a autonomia dos juízes são motivo de preocupação.

Para magistrados ouvidos pela Rede Brasil Atual, a figura de Mendes como  presidente do STF foi diferenciada, representando uma mudança de paradigma. “Foi um período um pouco agitado porque o ministro Gilmar Mendes, por seu perfil, é um homem que externa suas opiniões, gosta de transmitir suas convicções”, analisa Mozart Valadares Pires, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

“Como todo ser humano, Mendes tem defeitos, mas se há uma virtude é a coragem, mesmo sem respaldo da sociedade”, elogia. “Isso ele faz, com muita ênfase e com uma postura muito firme, o que pode gerar um mal-estar em algumas oportunidades. Mas é importante que o Judiciário participe de grandes discussões, observando seus limites, que interessam ao conjunto da sociedade brasileira”, completa Mozart.

Entre os “temas difíceis” citados pelo presidente da AMB, estava a crítica ao que Mendes considera “espetacularização” das operações da Polícia Federal, a atuação do Ministério Público, a cobrança de rigor pelo Tribunal Superior Eleitoral em relação a denúncias de propaganda eleitoral antecipada por parte do presidente da República, entre outras.

Outras questões passaram pela pauta do STF. A demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol e as pesquisas sobre células tronco foram duas das mais polêmicas. A decisão pela extradição do italiano Cesare Battisti e os dois habeas corpus a Daniel Dantas em menos de 24 horas – depois confirmados pelo pleno do colegiado – também geraram duras críticas à atuação do ministro.

“Ele é mais extrovertido, Peluso é mais introvertido, conversa menos, não gosta de se expressar, acha que o magistrado tem de ser mais discreto em proteção à atividade que exerce”, avisa. Mozart explica que emitir opinião é permitido a qualquer juiz, desde que não se trate de uma questão sobre a qual ele precise apreciar em julgamento posterior.

Para Luís Fernando Camargo de Barros Vidal, juiz de direito do Tribunal de Justiça de São Paulo e presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), Mendes continuou a ser, na presidência do Supremo, o ministro que sempre foi. “Sem entrar no mérito das polêmicas e opiniões, é positiva essa característica, mas as opiniões são do ministro”, pondera.

Ele considera interessante que o presidente da corte participe de grandes discussões. “Temos de entender isso como fruto de uma evolução do tribunal, não de um ministro”, avalia.

Ao entrar no mérito de algumas das opiniões de Mendes, o cenário muda. Um dos casos mais delicados envolve as críticas feitas ao juiz Fausto De Sanctis, responsável pelos pedidos de prisão preventiva e de escutas telefônicas na Operação Satiagrahara, que deteve o banqueiro Daniel Dantas e outras figuras de projeção política e econômica.

“O ministro Gilmar Mendes, e não o Supremo Tribunal federal, teve desgaste com os magistrados (no episódio)”, avalia Vidal. “Ao entrar no mérito das questões, fico à vontade de dizer que o ministro Gilmar Mendes se desgastou perante os juízes, porque eles, juízes, não reconheceram neste tipo de comportamento o esperado para um magistrado”, esclarece.

Além de não representar o conjunto dos magistrados, há outra diferença a se notar. “Precisamos diferenciar bem a opinião do presidente do Supremo, que muitas vezes não corresponde à posição do colegiado”, analisa Mozart.

Atropelos

Na visão de Vidal, a atuação no STF e, principalmente, no CNJ, foi ambígua. No caso do Conselho Nacional de Justiça, há um lado positivo, relacionado a discutir problemas internos do Judiciário, e outras questões. Em sua gestão, foi criado ainda um programa de metas para o Judiciário, o mutirão carcerário – para apreciar processos criminais contra detentos sem julgamento ou com direito a progressão de pena – e o programa Começar de Novo – de reintegração de apenado ao serviço público e à iniciativa privada.

Mas o lado considerado preocupante são “alguns atropelos às leis e à Constituição”. O principal exemplo do presidente da AJD relaciona-se à resolução 106, de 6 de abril deste ano.

“Um dos aspectos que se estabelecem é o de filiação dos juízes aos entendimentos das súmulas dos tribunais superiores – não as vinculantes do Supremo, mas as normais”, afirma Vidal. “Na verdade, estabelece-se um critério pelo qual é merecedor de promoção o filiado às orientações dos tribunais superiores, o que atenta frontalmente o princípio da autonomia e da independência do juiz, que é um dogma constitucional”, critica.

Ele alerta que seria um risco para a democracia que permaneça a “tendência arbitrária” na conduta do CNJ.