Entrevista de Lula

‘Retomar tradição legalista das Forças Armadas, desmilitarizar o governo e buscar a paz’

Presidente conversou com jornalistas da mídia independente e reforçou a posição do Brasil de protagonista na busca da paz no cenário internacional

Ricardo Stuckert
Ricardo Stuckert
Lula destacou o papel nefasto de Bolsonaro em corromper parte do Exército, e também teceu críticas à condução da política externa do país sob comando da extrema direita

São Paulo – Durante a conversa com jornalistas da mídia alternativa nesta terça-feira (7), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou, entre outros assuntos, sobre o papel das Forças Armadas em uma democracia saudável. “Não é correto que nenhuma instituição de Estado esteja envolvida na política”, afirmou. O presidente criticou o papel nefasto de Jair Bolsonaro em corromper parte do Exército e a condução da política externa do país sob comando da extrema direita.

Lula observou que o papel das Forças Armadas está “explícito” na Constituição. “São instituições que têm como função básica proteger a soberania nacional”, disse Lula. “Lamentavelmente o Exército de (Duque) de Caxias foi transformado no Exército de Bolsonaro. Não é uma coisa boa para esse país. Todo mundo conhecia o passado do Bolsonaro. Ele foi expulso do Exército. Ele tentou explodir um quartel. E quando assumiu a Presidência, explodiu tudo. Colocou em prática uma insanidade”, disse.

Lula afirmou que os esforços agora são para retomar a tradição legalista das Forças Armadas e desmilitarizar parte do governo civil.

“O que aconteceu com o Bolsonaro foi um desvio de comportamento de um presidente que resolveu ocupar todos os cargos públicos da sociedade civil com militares. Estamos agora colocando pessoal de direito. Militares podem trabalhar no governo. Por competência, concursados.”

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Na busca da paz

Lula viajará no fim da semana para os Estados Unidos, onde se reunirá com o presidente Joe Biden e lideranças políticas e sociais. Questionado sobre os temas que serão debatidos, reafirmou compromisso na busca pela paz e o fortalecimento das relações internacionais. O petista voltou a rechaçar qualquer envolvimento do Brasil na guerra entre Rússia e Ucrânia. “Não acredito que Biden me convide para participar de esforço de guerra na Ucrânia. O Brasil não participará.”

Lula argumentou que o Brasil pode desempenhar um papel fundamental na busca por um cessar fogo. Isso porque é um país neutro. A ideia, que ele já havia defendido em encontro com o chanceler alemão Olaf Scholz, é criar uma mesa internacional de negociações. “Não quero que o Brasil participe da guerra. Precisamos de alguém que defenda a paz nesse mundo. Sugeri, por telefone, ao presidente (Emmanuel) Macron, ao chanceler alemão Olaf Scholz, para criarmos uma espécie de G20 para discutirmos a paz. Não temos ninguém discutindo a paz. A Europa toda está envolvida na guerra”, disse.

Além do Brasil, o presidente chamou outras grandes economias mundiais à responsabilidade. “Então, quem pode negociar a paz é quem não está envolvido na guerra. Um grupo que tivesse a China, a Índia, o Brasil, a Indonésia, o México. Um grupo que pudesse falar com o Putin, com o Zelensky. Pessoas não envolvidas em guerra.”

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Fim do isolamento

O presidente defendeu o que chamou de política externa independente, com o fortalecimento de parcerias e o respeito à autodeterminação das nações. Segundo ele, o Brasil deve reatar relações e retomar negociações prejudicadas pelo isolamento que Bolsonaro impôs ao país na comunidade internacional. “Vamos reatar relações como sempre fizemos”, disse.

Essa retomada envolve também o diálogo com países como Cuba e Venezuela. “O Brasil nunca participou de bloqueio a Cuba. A Venezuela sempre foi uma boa parceira do Brasil. Cuba também sempre foi bom pagador. Quando o ex-governo entrou e não falou com ninguém, não podia nem receber. Eles nem cobraram. O Brasil chegou a ter superavit de 4 bilhões de dólares com a Venezuela. Não é pouca coisa. O Brasil vai reatar e manter relações com tranquilidade. Com qualquer país.”

Outros pontos que Lula destacou como prioritários na agenda internacional do país envolvem o engajamento contra as mudanças climáticas e o fortalecimento de uma economia verde. “Temos interesse tambpem na questão do clima, relação comercial entre Brasil e Estados Unidos, relação de ciência e tecnologia. Vamos discutir também a China. Espero que seja a pauta mais ampla o possível, sem abdicar dos problemas da nossa querida América Latina”, disse.

Negação da política

Sobre os problemas internos, além de defender uma política econômica que olhe para a população mais vulnerável, Lula identificou a negação da política como um problema central – por desconectar a sociedade das escolhas que faz na política. “Vimos a negação da política. Foram anos destruindo a política. ‘Todo político é ladrão’. O pessoal fala que ‘o Congresso não presta’. Precisamos levar em conta que o Congresso de hoje é o estado de humor e a qualidade de informação que o povo tinha no dia da eleição. Não podemos lamentar. Vamos tentar consertar em quatro anos”, disse.

Como resultado da negação da política, dissemina-se o ódio. “Outra tarefa importante é que precisamos amenizar ou diminuir o ódio estabelecido na sociedade brasileira e vários outros países do mundo. A extrema direita que nasceu no Brasil está na Espanha, na Itália, na Hungria, na França. Com um discurso mundial. Pátria, costumes e política religiosa. É assim na Grécia, na Espanha. Então precisamos que a sociedade compreenda a necessidade de que precisamos voltar a conviver democraticamente mesmo com divergências.”

Agentes do ódio

Alguns destes representantes da extrema direita e da negação da política agora estão no Congresso, como o ex-juiz Sergio Moro (no Senado) e o ex-promotor Deltan Dallagnol (na Câmara). Lula ironizou a presença desses personagens na política, mas negou dar importância para isso. “Seria um papel muito pequeno de um presidente da República que está com a responsabilidade de governar o Brasil ficar preocupado com o voto de um senador ou de um deputado”, disse.

“Aprendi a viver sem ódio. Estou de volta. O povo me absolveu e cabe-me agora fazer com que o povo seja mais feliz. Espero que essa turma tenha alguns amigos pelo menos. Essa gente vai viver isolada porque é muito difícil alguém confiar depois do que eles fizeram. Eles negaram a política o tempo inteiro e viraram políticos. Quero ver a partir de agora”, completou.

lula forças armadas
Lula e Paulo Pimenta com profissionais da mídia independente no Planalto: democracia, papel constitucional das Forças Armadas, retomada do respeito no Brasil no mundo e construção da paz (foto: Ricardo Stuckert)

Imprensa independente

Por fim, o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Pimenta, falou sobre o papel da imprensa na construção de um país democrático e sem ódio. Em primeiro lugar, o ministro disse que já existem ações de defesa da liberdade de imprensa. Além disso, deixou uma mensagem de que o governo deve estruturar políticas públicas de apoio à imprensa independente. Quarenta profissionais de diversos veículos participaram do café da manhã no Palácio do Planalto. Entre eles, o diretor da RBA, Paulo Salvador, e o repórter Jô Myagui, da TVT.

“Pedimos que os crimes contra jornalistas tivessem um tratamento diferenciado daqueles que atentaram contra a democracia. Isso funcionou, inclusive alguns profissionais prestaram depoimento em local reservado. Muitas vezes, por parte da polícia inclusive, há intimidação (…) estamos discutindo um observatório para acompanhar a violência contra a liberdade de imprensa e de expressão. Teremos uma política pública transversal no sentido de fortalecer essa atividade”, afirmou.

Em pouco mais de um mês de governo, Pimenta disse que a mudança já é notável. Primeiramente, no setor de transparência. “A forma como temos nos relacionado com a imprensa desde o primeiro dia, a transparência, o diálogo aberto não deixam dúvidas de uma mudança na condução da comunicação. Esse sempre foi o compromisso”, disse ainda.

Por fim, o ministro falou em “estruturar um sistema de informação que entenda que existem diferentes formas de comunicar. Diferentes realidades, plurais, diferentes públicos”. E garantiu que todos serão recebidos na política oficial de comunicação. “Estamos fazendo uma série de modificações para que possamos ter políticas públicas de fomento, de apoio, de fortalecimento, de formação, que possam estruturar uma rede independente e forte de comunicação. Que tenha diversidade, presença nos territórios. Teremos uma política pública voltada ao fortalecimento da imprensa independente no nosso país.”