Duas décadas depois

Câmara aprova urgência para lei do ‘Estado de direito’, que poderia comprometer bolsonaristas

Projeto apresentado há quase 20 anos extingue a Lei de Segurança Nacional, herança da ditadura

Pedro França/Agência Senado
Pedro França/Agência Senado
Urgência foi aprovada por ampla maioria. Texto está na Câmara desde 2002

São Paulo – Com 386 votos a favor e 57 contra (sendo 35 do PSL), a Câmara dos Deputados aprovou na tarde desta terça-feira (20) requerimento de urgência para o Projeto de Lei (PL) 6.764, que define crimes contra o Estado democrático de direito. Em tramitação há quase 20 anos na Casa – foi apresentado em 2002 –, o projeto foi idealizado para substituir a Lei de Segurança Nacional (LSN), aprovada ainda no período da ditadura.​

O PL 6.674/02 é resultado do trabalho de uma comissão constituída pelo governo para elaborar uma nova lei, que inclusive substituísse o conceito de “segurança nacional”, considerado autoritário, por “Estado de direito”. O grupo era coordenador pelo então ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que morreu em 2010. Ele liderava Luis Roberto Barroso (hoje ministro do Supremo Tribunal Federal), Luiz Alberto Araújo (professor constitucionalista) e José Bonifácio Borges de Andrada, atual subprocurador-geral da República.

Enquadramento indevido

A iniciativa surgiu depois que o governo Fernando Henrique Cardoso, por meio da Polícia Federal, enquadrou dois sem-terra na LSN. Diante da repercussão negativa, começaram as gestões para se pensar em uma nova lei. “Os sem-terra foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional, mas não poderiam ser enquadrados no projeto que elaboramos”, declarou Cernicchiaro ao jornal Folha de S.Paulo no início de 2002. “Eles não querem impedir o governo de fazer algo que a lei permite. Eles querem pressionar o governo para obter a reforma agrária, que é uma coisa legal. Toda greve é uma pressão, mas uma pressão legítima”, acrescentou. Assim, era preciso pensar não em uma lei para proteger o governo, mas um texto que considerasse “a defesa do Estado e dos direitos do cidadãos”.

O projeto, que mexe no Código Penal e extingue a LSN, se divide em cinco capítulos: crimes contra a soberania nacional (I), contra as instituições democráticas (II), contra o funcionamento das Instituições Democráticas e dos Serviços Essenciais (III), contra a autoridade estrangeira ou internacional (IV) e contra a cidadania (V). É assinado pelo então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior. Apresentado em maio de 2002, ficou adormecido até 2007. Teve depois um período ainda mais longo de hibernação, de 2008 até este ano, quando um uso mais contínuo da LSN começou a causar incômodo.

Ordem constitucional

Alguns trechos do projeto, caso aplicados como a lei prevê, comprometeriam integrantes e simpatizantes do atual governo. Um artigo, por exemplo, criminaliza a tentativa de, “com emprego de grave ameaça ou violência, impedir ou dificultar o exercício do poder legitimamente constituído, ou alterar a ordem constitucional estabelecida”. O seguinte destaca a tentativa, de “o funcionário público civil ou militar, depor o governo constituído ou impedir o funcionamento das instituições constitucionais”. Não foram poucos os ataques e ameaças à democracia, com pedidos de “intervenção militar”, ou, em específico, ao STF.

Outro artigo dispõe sobre “atentar contra a integridade física” do presidente ou vice da República, dos presidentes da Câmara, do Senado e do STF, além do procurador-geral, “por facciosismo político ou para alterar a estrutura do estado democrático ou a ordem constitucional”. A lei também fala sobre “incitar, publicamente, a prática de guerra civil”. Há ainda um artigo sobre sabotagem, que tempos atrás poderia ser aplicado a um então deputado de origem militar. O texto detalha ainda o direito à manifestação, práticas de discriminação e apologia ao nazismo.