Entrevista

Vitor Marchetti: Lula volta a ocupar liderança da centro-esquerda e bolsonarismo sente o golpe

“Você olha e não vê nenhum político no cenário atual que esteja num patamar próximo, numa estatura política próxima”, diz professor da UFABC

Ricardo Stuckert
Ricardo Stuckert
Lula volta ao centro do xadrez político brasileiro depois de anuladas as condenações contra si no âmbito da operação Lava Jato. E já balança as estruturas bolsonaristas

São Paulo – Logo após a decisão do ministro Edson Fachin de anular as condenações de Lula, na segunda-feira (8), e hoje (10), com o discurso do ex-presidente, análises de conteúdo das redes sociais mostraram que os bolsonaristas sentiram o golpe. Ou os golpes. Um dos posts mais emblemáticos desse impacto foi publicado pelo próprio senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), no Twitter. Negando atos pessoais e governamentais de seu pai, o presidente Jair Bolsonaro, desde o início da pandemia de coronavírus no país, o chamado “Zero 1” publicou na rede social: “Vacina para gerar empregos! Nos próximos dois meses vacinaremos dezenas de milhões de brasileiros!”, prometeu. Para evitar um mal-estar maior com seguidores, ressalvou que “tratamento precoce e vacina são totalmente complementares”.

Desde a decisão de Fachin, o bolsonarismo voltou, nas redes, a falar em intervenção das Forças Armadas, impeachment de ministros do STF e alertar para “um novo golpe” em andamento. “Essa reação mostra a força da decisão de Fachin e do discurso de Lula. Eles não reagiriam se isso não fosse detectado como algo importante. Essa narrativa de ‘golpe’ serve para animar a torcida dos radicais”, diz o cientista político Vitor Marchetti, da Universidade Federal do ABC.

Poucas horas depois do discurso de Lula, Bolsonaro falou no Palácio do Planalto. Imitando o ex-presidente, usou máscara, que só tirou quando se dirigiu aos presentes, para mostrar-se favorável às vacinas. “Vacinamos 100% dos idosos acima de 85 anos. Entre eles, a minha mãe”, disse, contrariando sua amplamente conhecida postura contra as medidas de proteção contra a covid. Postura que especialistas em todo o país e no mundo apontam como responsável pela tragédia do Brasil, com mais de 270 mil mortos pela pandemia.

Novo cenário

Para Marchetti, a essa altura do embate político no país, se o extremismo bolsonarista não é irrelevante e pode mesmo trazer instabilidade, por outro lado o risco de rompimento institucional, como um golpe de Estado, está descartado. “Eu não vejo esse horizonte. Não vejo o ambiente institucional de terra arrasada, em que o presidente é capaz de fazer tudo. Se fosse assim, já teria feito”, diz.

Na opinião do professor da UFABC, tanto a decisão de Edson Fachin como o discurso de Lula mudam o cenário político brasileiro. E Lula volta a ocupar o espaço que nenhum líder ocupou nos últimos anos. “A primeira coisa que chama a atenção é a escassez de lideranças políticas no país. Quando se olha para o discurso do Lula, aparece um estadista. Você olha e não vê nenhum político no cenário atual que esteja num patamar próximo, numa estatura política próxima.”

Com o discurso de hoje no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Lula volta ao estilo político que o caracterizou. Seu movimento é o de se identificar como alguém capaz de promover uma agenda social progressista, mas que não ameaça o mercado, a estabilidade e o funcionamento do sistema. Parcela do mercado entende isso. Sinal dessa percepção foi a fala do megainvestidor Mark Mobius, que afirmou nesta terça (9) à Bloomberg, sobre “a volta de Lula”. “É estranho que o mercado não goste, porque Lula presidiu alguns dos tempos mais felizes do Brasil. Não creio que a volta seja necessariamente ruim para o mercado brasileiro”, afirmou.

Leia a entrevista de Vitor Marchetti

Como vê o discurso de Lula, que aparece como a fala de um estadista, no pavorosocenário do Brasil, e também olhando para 2022?

A primeira coisa que chama a atenção é a escassez de lideranças políticas no país. Quando se olha para o discurso do Lula, aparece um estadista, como você disse. Você olha e não vemos nenhum político no cenário atual que esteja num patamar próximo, numa estatura política próxima.

No discurso de hoje, ele não é categórico de que será candidato, mas é muito categórico ao se colocar na disputa política, seja para ser o candidato, seja para ajudar a formar uma frente. Está claro que a decisão do Fachin muda o cenário. Foi tomada para resolver conflitos internos no STF, que tem alas lavajatistas e garantistas há tempos batendo cabeça. Essa tomada de decisão de Fachin mexe intensamente no cenário político, porque recoloca a capacidade de Lula de se fazer uma liderança importante.

Embora relevante, o fato de ele ser elegível é menos importante do que o fato de Lula cada vez mais deixar claro que foi vítima de uma perseguição politica vestida de processo judicial. Esse fato o recoloca. Para quem acompanha mais de perto já era claro, mas isso cada vez mais ganha repercussão na sociedade.

O cientista político e professor Vitor Marchetti (TVT/reprodução)

Não à toa, ele cita o Jornal Nacional de ontem, porque tem a dimensão de que fica mais aberta para a sociedade a ideia de que se armou uma investigação judicial, e isso começa a se difundir mais fortemente, sai das nossas bolhas.  

Imediatamente depois do discurso de Lula, a GloboNews entrou ao vivo com uma nota rebatendo as críticas. Ele não poderia ter sido mais estratégico ao falar da Globo, para não provocar mais reação ou ódio da emissora?

Ele faz um discurso no sentido de se mostrar alguém desarmado do rancor e do ódio. E se tem alguém que tem direito de estar armado do rancor e do ódio é ele (risos), mas ele sabe que isso não é bom nesse momento. Ele tenta desconstruir isso e volta ao estilo político dele.

Fez a crítica, mas fala da liberdade de expressão, de imprensa. Aponta a crítica, mas ressalta a importância dos meios. Fez várias sinalizações, num tom de moderação, resgatando a ideia de que é radical para combater a pobreza, a desigualdade social. Um radicalismo dentro do jogo democrático.

Sinaliza para diálogo com empresários, para a retomada da capacidade de investimento do Estado, compromisso com o desenvolvimento econômico. Faz um movimento de ser identificado como alguém capaz de ir para o centro moderado, com uma agenda social,  mas que não ameaça o mercado, a estabilidade, o funcionamento do sistema, ao contrário.

Teve a fala de Mark Mobius, ao vivo na Bloomberg, dizendo que não entende por que o mercado financeiro brasileiro rejeita o nome de Lula, minimizando um pouco o “risco Lula”.

Os movimentos extremistas bolsonaristas, depois da decisão de Fachin, já falam em “golpe”, “preparem-se para o golpe” etc. Lembrando o episódio no Capitólio, nos Estados Unidos, aqui não poderia ser pior, descambar para um conflito de fato?

Essa reação mostra a força da decisão de Fachin e do discurso de Lula. Eles não reagiriam se isso não fosse detectado como algo importante. Essa narrativa do “golpe” serve para animar a torcida dos radicais. Eles precisam manter a “tropa” unida.

Esse extremismo não é irrelevante, não digo que não vai trazer instabilidade ao país. Acho que vai. A invasão ao Capitólio foi um sinal, mas acabou, e o sistema está funcionando. Se a gente tem um potencial para algo além disso? Um golpe de estado, militar, que rompa com eleição, mantenha Bolsonaro no poder? Eu não vejo esse horizonte.

Já estamos sob um governo militar, isso é cada vez mais evidente. Assim como é cada vez mais evidente a incapacidade política e técnica desses quadros. Acho difícil uma cúpula militar endossar esse tipo de coisa, um golpe, numa conjuntura muito diferente da que vivemos, por exemplo, em 1964.

As PMs e forças de segurança pública locais têm potencial para gerar níveis importantes de instabilidade, mas não têm coesão e força para produzir um golpe de estado. Só se tivessem adesão das Forças Armadas. Podemos ter instabilidade, mas teremos que acionar mecanismos para conter isso: empresários, grande imprensa, forças armadas, partidos políticos.

Não me parece que esses atores vão endossar um nível de instabilidade desse. A grande imprensa ainda compra a agenda de Guedes, mas não pactua, exceto setores isolados, com o discurso extremista dos radicais do governo.

A diferença entre o Brasil e os Estados Unidos é que as instituições norte-americanas são fortes. Mas e aqui?

Nossas instituições não são tão fortes quanto as americanas, mas talvez sejam um pouco mais fortes do que a gente imagina, olhando para a nossa história. Em março de 2020, Bolsonaro participava de protestos (contra a democracia), falava de golpes, mas agora vai capitulando para o Centrão, para o fisiologismo. A eleição do (Arthur) Lira (para a presidência da Câmara dos Deputados) é isso.

Vários quadros expressivos do radicalismo, como Sarah Winter, como Weintraub, o próprio Daniel Silveira, vão perdendo apoio da presidência da República. Se ele tivesse esse poder ilimitado e sentisse que poderia avançar duas casas, já teria feito. Não faz porque há sinais de que há forças econômicas, políticas e das instituições que oferecem barreiras e limites para a atuação do presidente.

Hoje, o Rodrigo Maia colocou postagens elogiosas ao Lula. Arthur Lira tinha feito ponderações, assim que Fachin soltou a decisão. Não vejo o ambiente institucional de terra arrasada, em que o presidente é capaz de fazer tudo. Se fosse assim, já teria feito.

O que a mídia chama de “centro”, que é a direita, ou “direita democrática”, está sem espaço. Vai continuar sem?

Esse vai ser o grande dilema. Com Lula sendo candidato ou não, já há uma liderança refortalecida para ser a liga, que vai fazer as amarrações, construir as pontes, para ser o centro organizador do campo de esquerda. Lula volta a ocupar esse papel.

O campo radical já é ocupado pelo Bolsonaro. O debate é se esse “Centrão”, como você chama bem a atenção, muito mais com cara de direita, embarca para o lado de Bolsonaro, ou se constrói uma alternativa de peso.

Tentaram fazer com Alckmin e deu muito errado. Mas a conjuntura era outra. Se essa direita brasileira vai conseguir apresentar uma alternativa robusta, parece ser a chave da questão.