Sob gritos de “vergonha”, juiz que tentou investigar ditadura espanhola é suspenso

Baltasar Garzón, famoso por ter ordenado a prisão de Pinochet, deixa a Audiência Nacional depois de 22 anos com apoio de colegas e da sociedade, mas barrado por grupos de extrema-direita

A suspensão do juiz Baltasar Garzón provocou protestos de intelectuais, juristas e de setores da sociedade nesta sexta-feira (14) na Espanha. O Conselho Geral de Poder Judicial (CGPJ) definiu pela suspensão em caráter cautelar para afastar o magistrado do exercício de suas funções na Audiência Nacional, na qual estava há 22 anos.

Garzón entrou na mira de grupos de direita espanhóis depois que decidiu investigar os crimes cometidos pela ditadura do general Francisco Franco, regime que durou quase quatro décadas (1939-1975). Mãos Limpas, um sindicato conservador, e Falange Espanhola, organização de ultradireita do início do século XX que apoiou o franquismo, encontraram respaldo no Judiciário para levar adiante a suspensão de Garzón.

Na quarta-feira (12), o Tribunal Supremo decidiu que o juiz é réu por supostamente prevaricar, ou seja, no exercício do cargo, desrespeitar a lei. O entendimento é de que houve violação da lei que garante anistia a torturadores do regime franquista ao tentar investigar os fatos.

Nesta sexta, Garzón estava em seu trabalho quando recebeu uma chamada telefônica avisando sobre sua suspensão. Chorando, ele abraçou os colegas e permaneceu no prédio que, rapidamente, foi cercado por manifestantes que gritavam “Vergonha” e “Garzón, amigo, o povo está contigo”. Pela internet se espalharam rapidamente os comentários de apoio ao juiz. A página do Twitter serviu para convocar uma manifestação contra a decisão do Conselho Geral e milhares de comentários foram deixados na página do diário El País. São mensagens como “Que nojo de justiça. Que nojo de direita podre e atrasada. Que nojo de país” e “Que injustiça, que vergonha! Como vamos permitir que a ultradireita siga humilhando o povo?”.

O jornal colocou o tema como o principal do dia, ouvindo a opinião de especialistas e escalando seu time de colunistas para escrever a respeito. “Garzón é um juiz importante, que teve em suas mãos delitos gravíssimos. Quis investigar, segundo a lei de Memória Histórica, sobre as atrocidades da ditadura, e o dente lento de uma justiça agora sob suspeita lhe há mordido insistentemente (…) É um dia extraordinariamente cinzento para a natureza da democracia e para a vitalidade das instituições judiciais”, assinalou o colunista Juan Cruz.

O cineasta Pedro Almodóvar veio a público comentar o tema: “Como cidadão leigo em procedimentos que regem a justiça na Espanha, o fato de que afastem do exercício de sua profissão o juiz Baltasar Garzón, ou qualquer outro juiz, por pretender julgar os crimes da ditadura, provoca-me uma desassossegante desconfiança em nosso sistema judicial.”

Ao mesmo tempo em que sofre este processo, o magistrado terá de responder a outros dois, também abertos na recente ofensiva, por suposto uso ilegal de escutas telefônicas e pelo financiamento privado de cursos que deu em Nova York.

O Tribunal Supremo formou uma comissão que vai discutir se Garzón poderá se transferir para a Corte Penal Internacional de Haia, na qual foi requisitado para um período de sete meses na condição de especialista em crimes de lesa-humanidade. Agora caberá aos juízes definir se, mesmo sofrendo processos, ele pode fazer a mudança – os casos, de toda maneira, serão levados adiante.

Histórico

Garzón tornou-se famoso na América do Sul quando, em 16 de outubro de 1998, ordenou a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, à época internado em uma clínica de Londres. Além disso, o magistrado participou de outras investigações a respeito de regimes militares sul-americanos e de condenações ao grupo armado basco ETA.

A história de como Garzón levou Pinochet à cadeia é contada por Fernando Morais no livro “Cem quilos de ouro”. A história, publicada originalmente na revista Playboy, faz a seguinte descrição: “ O homem que mudou o destino de Pinochet é um espanhol míope, de 1,80 metro de altura, com cara de galã de cinema — e que nunca havia posto os pés no Chile”. Garzón enfrentou resistência por parte do Judiciário espanhol porque alguns de seus colegas entendiam que não havia amparo legal para ordenar a prisão por crimes cometidos no Chile.

Peitando esses problemas, o magistrado e sua equipe trabalharam em ritmo de maratona durante 72 horas para conseguir apanhar Pinochet. Um processo de 300 páginas foi apresentado ao Judiciário britânico com a necessidade de se fazer uma rápida análise, pois era sexta-feira e no dia seguinte, além do descanso dos juízes, o ex-ditador deixaria o país.

Morais narra outros casos nos quais o magistrado atuou: “Foi daqui, desses micros, que saiu a munição que Baltasar Garzón utilizou para pôr na cadeia gente de todo tipo – de terroristas da ETA, o grupo nacionalista espanhol que luta pela independência do País Basco, a policiais que torturavam terroristas da ETA. Daqui saíram mandados de prisão contra um ex-presidente da República do Togo, na África, acusado de corrupção, contra dois generais, um brigadeiro e um almirante argentinos, acusados de tortura, contra Amira Yoma, cunhada do presidente argentino Carlos Menem, denunciada por lavagem de dinheiro para narcotraficantes, contra o milionário ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, que Garzón acusou por sonegação de impostos, e contra capi da Máfia italiana e traficantes de drogas dos cartéis de Cáli e Medellín, na Colômbia”.

Na ocasião da prisão do ditador chileno, o juiz manifestou que “Sempre confiei na Justiça. Estou convencido de que Pinochet, mais dia, menos dia, desembarcará no aeroporto de Barajas, em Madri. E aqui será julgado pelos crimes que cometeu”. O fato é que o responsável pela queda de Salvador Allende morreu em dezembro de 2006 sem pagar pela morte de três mil pessoas.