Contra o monopólio

Argentina: projeto de telefonia e banda larga cria atrito entre governo e oposição

Ministros de Cristina Kirchner dizem que iniciativa é fundamental para universalização de acesso e para enterrar legislação de ditadura. Opositores afirmam que ideia é ampliar ganhos de megacorporações

Casa Rosada

Capitanich durante debate no Senado: atualização do marco legal é importante e favorecerá sociedade

Buenos Aires – O início dos debates legislativos sobre o projeto Argentina Digital foi marcado por acirramento, como era de se esperar. Lançada na última semana, a iniciativa apresentada pelo governo Cristina Fernández de Kirchner como uma maneira de universalizar o acesso da população às telecomunicações e tirar do caminho um entulho da ditadura ganhou leitura diferente no Congresso.

Opositores à Casa Rosada e alguns meios de comunicação entendem que aquilo que se apresenta como democrático servirá para concentrar ainda mais poderes nas mãos das megacorporações do setor. O debate começou a ser travado na Comissão de Sistemas, Meios de Comunicação e Liberdade de Expressão do Senado argentino. A proposta pretende atualizar a Lei de Telecomunicações nº 19798/1972, do governo ditatorial de Alejandro Lanusse, e o Decreto 764/2000, regulamentando o setor de telecomunicações.

O Argentina Digital declara de interesse público o desenvolvimento e regulamentação das tecnologias de informação. Assim, até os locais mais afastados do país terão acesso à telefonia móvel e fixa, internet e televisão de qualidade, entende o governo. A comitiva enviada esta semana ao Congresso mostra o peso depositado pela gestão de Cristina sobre o tema: o ministro da Economia, Axel Kicillof, o chefe de Gabinete, Jorge Capitanich, o ministro de Planejamento, Julio De Vido, e o ministro de Comunicações, Norberto Berner, fizeram o corpo a corpo com os parlamentares na tentativa de evitar polêmicas, que, no entanto, acabaram surgindo.

Na terça-feira, durante a sessão no Senado, De Vido reiterou que os avanços têm resultados notáveis em acessibilidade, desenvolvimento da indústria e soberania nacional, e a lei almeja que o acesso à telecomunicação seja universal em território argentino.

A relatora do PL, Liliana Fellner, da coalizão governista Frente para a Vitória, elogiou o projeto, que, em sua visão, coloca a Argentina entre os países mais avançados do mundo em matéria de regulamentação da convergência tecnológica e da integração de serviços. “Não buscamos somente substituir a antiga Lei de Telecomunicações, ditada em 1972. Fundamentalmente, terminaremos com a desordem legislativa existente”, disse a presidenta da Comissão de Sistemas, Meios de Comunicação e Liberdade de Expressão da Câmara Alta do Senado.

Liliana julga importante escutar todas os sindicatos e pequenas e médias empresas (PMEs) do interior do país porque, além de a lei estar vinculada ao usuário e ao seu direito de obter comunicação como serviço universal, são justamente estes setores que merecem mais ênfase. Para ela, é novidade declarar, como serviço público, as tecnologias de informação e comunicação. “Ninguém tinha pensado nisso antes. Essa medida reduz gastos para o usuário e aumenta a qualidade do serviço.”

Martín Becerra, professor de Ciência da Comunicação na Universidade de Buenos Aires e de Comunicação Social na Universidade Nacional de Quilmes, entende que a Lei de Meios, de 2009, é mais rigorosa com as empresas de radiodifusão. O projeto que o Senado começa a discutir é mais brando em relação às condições para o cumprimento ou garantia da oferta dos serviços nas telecomunicações. “Um dos pontos que se sobressaem neste projeto de lei é que as telefônicas podem prestar serviços audiovisuais.”

Enquanto o artigo 25 da Lei de Meios proíbe que um prestador de serviços públicos ou acionista com 10% ou mais de uma empresa tenha outra no segmento audiovisual, o artigo 9 da Argentina Digital permite que os proprietários de licenciaturas de telecomunicações públicas possam, por exemplo, oferecer os demais serviços do ramo (internet e telefonias fixa e móvel). Ou seja, para vender todos os serviços, basta que a empresa tenha contabilidade separada e não seja considerada anticompetitiva. “Se (os autores da lei) fossem mais rigorosos com as empresas de telecom, poderiam exigir que haja primeiro capacidade de desenvolvimento no mercado antes de passarem para o ramo audiovisual”, critica Becerra. Com essa alteração, a Telefónica, empresa espanhola, consegue alcançar 90% do mercado.

Tal medida, considerada bastante contraditória, foi duramente criticada pelos senadores e por setores da mídia. Para o senador Gerardo Morales, líder da oposição no Senado, o governo está se “redimindo” com as empresas de comunicação. Ele também diz que não é claro que o projeto defenda as pequenas e microempresas. “As empresas telefônicas vão comer os cabos e as MPEs do interior.”

Desde o envio do projeto de lei ao Congresso, o TN, canal do Grupo Clarín, indicou alguns problemas que a lei pode permitir se aprovada. A concentração de mercado de duas telefônicas do país – Telefónica e Telecom – poderá alcançar mais de 90% dos usuários. Atualmente, somam 67%. Enquanto isso, a Cablevisión, que detém 6%, poderia cair para 1% da fatia de mercado. Além disso, há proibição de pacotes de serviços mais baratos das companhias de internet, enquanto esses combos são permitidos para as empresas telefônicas.

O senador Miguél Ángel Picchetto (PJ) aponta que a Telefónica representa um “capitalismo colonial”. Na apresentação do PL, acusou a empresa de não ter investido sequer um peso nas telecomunicações. “Temos que ver se conseguimos alguma norma que ajude a todos no acesso à tecnologia, principalmente os que não são iguais às grandes estruturas telefônicas que os dominam (…) O que a Telefónica não investiu, o país investiu em 30 mil quilômetros de fibra ótica.” Segundo ele, os problemas atuais nas telefonias móveis se deram porque não há investimento a partir da demanda e do crescimento do país.

Fernando Solana, senador pela Frente Ampla Unen, de oposição, também criticou a empresa espanhola. “Não nos esqueçamos do que é a Telefónica Argentina. Degradaram a EnTel para que o usuário clamasse por empresas privatizadas”, destacou.

Ontem, frente as críticas, o chefe de Gabinete de Cristina afirmou que o projeto está aberto a aprimoramentos, especialmente os que visem a proteger cooperativas e pequenas empresas e criticou a ideia de dizer que a iniciativa tenta ampliar o poder das megacorporações do setor. “Pretender que este projeto responde a uma iniciativa para favorecer as empresas telefônicas é desconhecer o espírito da norma”, afirmou, durante entrevista coletiva na Casa Rosada. “Para construir uma Argentina digital é necessário estabelecer um marco jurídico moderno. Se não se estabelece o marco adequado se investe somente aqui, onde está a nata do negócio para as companhias, e assim muitos povos não poderiam se comunicar.”

Crescimento das teles argentinas

Atualmente, na Argentina, há 45 milhões de linhas móveis ativas – em 2003, eram apenas 4,5 milhões. A internet móvel registra 27,4% dos dispositivos na América Latina. Enquanto isso, 95,4% das residências têm acesso a algum tipo de telefone, sendo que quase todos os lares urbanos têm acesso ao serviço. Entretanto, em 19 províncias do país, quase 10% dos lares não têm acesso a telefonias fixas ou móveis e celular. Em apenas seis anos, a internet argentina cresceu 400%, graças às políticas públicas do setor, como o Plano Argentina Conectada. Com ele, foram construídos 30 mil quilômetros de fibra ótica, 25.800 quilômetros de redes e 4.200 quilômetros de redes provinciais.

Também foram instalados 170 Núcleos de Acesso ao Conhecimento (NAC) – espaços que oferecem acesso às tecnologias de informação e comunicação (TIC) – em 150 cidades da Argentina. Mensalmente, são 69 mil usuários, que buscam conseguir diploma universitário (6 mil) e, também, acessar as redes pela primeira vez (5.800 pessoas).

Com os avanços tecnológicos e a inclusão social, mais de 2.400 estações de satélites conectados à internet foram instalados para o programa Internet para Estabelecimento Educativo Rural e de Fronteira. Com o Conectar Igualdade, 4,5 milhões de notebooks foram entregues a estudantes e professores de escolas secundárias de 2010 até a data do envio do PL. Além disso, atualmente, 82% da população tem acesso à TV digital.

Para Axel Kicillof, ministro da economia, as tecnologias de informação têm um crescimento significativo na evolução das vendas e hoje representam uma porcentagem importante dos gastos das famílias. “É um direito humano, porque sem a internet estamos descolados do mundo.” Assinalou que se trata de um direito à comunicação, uma participação política, social e cultural. “Quando o setor é observado com dinamismo se vê que todos os serviços de comunicação sofreram uma mudança de perspectiva.”

Regulamentação na América Latina

Na Colômbia, em 2009, o Ministério das Comunicações foi transformado em Ministério das Tecnologias da Informação e Telecomunicações (MinTIC). A missão principal do MinTIC é de converter-se em facilitador do processo de empoderamento das TICs, a fim de articular ações do setor privado, contando com ampla habilidade de intervenção na infraestrutura.

Três anos depois, no México, foi consolidado um processo de reforma no setor de telecom. A nova lei garante a inclusão da aprovação à sociedade de informação e do conhecimento e seu acesso às TICs, buscando que sua prestação de serviço seja de qualidade, plural, com cobertura universal, contínua, de interconexão e convergência. A lei cria o Instituto Federal de Telecom, que tem por objetivo principal impulsionar o desenvolvimento eficiente dos serviços, contando com a regulamentação, promoção e supervisão do uso, aproveitamento a exploração de infraestrutura e insumos essenciais.