América Latina

Héctor Béjar analisa neoliberalismo, extrema direita e futuro da esquerda

Sociólogo fala sobre os rumos do continente e como as eleições do Brasil e Colômbia são fundamentais

Cesar Fajardo / Presidência Peru
Cesar Fajardo / Presidência Peru
Após 20 dias no cargo, Héctor Béjar renunciou ao Ministério das Relações Exteriores, depois de pressão midiática

São Paulo – O advogado e sociólogo Héctor Béjar, ex-chanceler do presidente peruano Pedro Castillo, é considerado um dos intelectuais mais importantes da América Latina. Béjar tem vasta produção escrita sobre a história de seu país, em especial o papel da esquerda e as possibilidades de mudança social. Em entrevista ao Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, o pensador faz uma análise sobre América Latina, neoliberalismo, ditaduras e o futuro da esquerda do hemisfério.

Na entrevista, Béjar analisa quatro emblemáticos golpes de Estado na América Latina – Chile (1973), Peru (1992), Honduras (2009) e Bolívia (2019) – que considera revertidos com vitórias de governos progressistas. De acordo com o intelectual, os presidentes Gabriel Boric (Chile), Xiomara Castro (Honduras), Luis Arce (Bolívia) e Pedro Castillo (Peru) se unem a uma série de presidentes que representam forças políticas da esquerda.

O ex-chanceler também avalia a consolidação do neoliberalismo na região ao longo dos anos 1990, após períodos de ditaduras. Ele também debate a rapidez com que os países da região elegeram formações políticas de esquerda nos anos subsequentes, e os rumos para toda a região caso Brasil e Colômbia reconquistem governos progressistas em 2022.

Em 1961, aos 26 anos, Héctor Béjar viajou para Cuba para fazer treinamento como guerrilheiro. No ano seguinte, ele e alguns de seus companheiros formaram o Exército de Libertação Nacional (ELN), para atuar no Peru. Ano passado, o presidente Pedro Castillo convidou o sociólogo para se juntar ao seu governo como ministro das Relações Exteriores. Porém, Héctor Béjar ficou poucas semanas, entre 29 de julho e 17 de agosto. A brevidade de seu mandato é explicada por uma reorganização da equipe de governo.

“Contrabando, tráfico, mineração, comércio e micro-comércio geram enormes quantias de dinheiro que fluem ao nível do campo popular. Então aí se produzem burguesias emergentes, ou máfias emergentes, pois tudo isso está manchado pela corrupção”

O professor eleito presidente pelo partido Peru Livre viu-se pressionado a reduzir a presença do campo de esquerda em seu ministério, com objetivo de formar uma composição mais moderada e melhorar a relação com o Legislativo. Assim, Béjar foi um dos “removidos”.

Héctor Béjar e a América Latina

Quais são os desafios e ameaças para o campo popular que quer levar a cabo essas transformações políticas, sociais, culturais necessárias e em chave revolucionária? Pergunto em relação à caracterização que você faz da nova onda progressista, onde vimos casos tanto no Peru, no Chile ou no Equador, em que essas esquerdas supostamente privilegiam o técnico sobre o político, dispensam um pouco o popular e acabam gerando um empate com o sentimento do povo e são deslocados por alternativas de direita, neoconservadoras e ultraneoliberais.

O que chamamos de campo popular varia de acordo com cada país. O que eu conheço melhor, claro, é o campo popular no Peru e acho que é muito parecido com o da Bolívia. Existe uma “burguesia popular”. O contrabando, todo o tráfico, mineração, comércio e micro-comércio geram enormes quantias de dinheiro que fluem ao nível do campo popular. Então aí se produz o que podemos chamar de burguesias emergentes ou máfias emergentes, por assim dizer, porque tudo isso está manchado pela corrupção.

Portanto, é muito difícil, neste momento, em países como o Peru, fazer essa distinção. E, portanto, acho que no campo popular estão desde os setores extremamente pobres, pessoas que não têm o suficiente para comer, até pessoas que têm muito dinheiro. Esse termo “burguesia popular” pode parecer contraditório, mas estou tentando expressar algo da realidade social.

Acredito que na América Latina não existe uma esquerda, existem muitas esquerdas. Da esquerda que não se sabe se é de esquerda ou de direita, ou de centro-direita, até a extrema esquerda. Ou também o mundo popular, que não se define como de esquerda, mas que fisicamente está à esquerda, o que me parece o mais importante.


Por exemplo, se você olhar a política da esquerda nicaraguense, do sandinismo, a Nicarágua é extremamente conservadora em termos de direitos sexuais e reprodutivos. Então, acho que temos que fazer uma reaproximação política muito grande.


No caso peruano, por exemplo, as grandes massas populares não são de esquerda, são massas populares. Dentro delas, certamente há pessoas de esquerda, é claro, mas eu não definiria, per se, um rondero (espécie de guarda camponesa, a principal base social de Pedro Castillo) como um homem de esquerda. Quando se trata de relações conjugais, ele é extremamente conservador e certamente um católico devoto. Aborto? De jeito nenhum. Racismo? Também não. Porque há racismo dos dois lados, em termos de um forte regionalismo.

Em algumas partes do Peru há também uma espécie de regionalismo anti-Lima, que não sei se pode ser paralelo ao racismo de Lima contra as províncias. Portanto, há muitas coisas que se cruzam e que a direita às vezes aproveita. Se fossem inteligentes, aproveitariam muito mais. Acho que o que precisamos fazer é uma análise desapaixonada de como o que chamamos de movimento popular está se desenvolvendo. O que exatamente é um movimento popular e o que não é? Em tempos de maior mobilização no Peru, nos últimos anos, há milhares de pessoas que não se mobilizaram. Não esqueçamos que Lima tem 10 milhões de habitantes e até agora não vi uma manifestação de cem mil pessoas em Lima.

Nesse sentido, vinculado a essa análise do que é o movimento popular com toda a sua diversidade na região sul-americana, meso-americana e caribenha, como você entrelaça essa análise com a possibilidade de construção de um projeto continental? Recordando os legados que ainda temos vivos de Bolívar, Faustino Sánchez Carrión, o próprio Hugo Chávez e, recentemente, por exemplo, o camarada Evo Morales, de falar de uma América Latina plurinacional contra o imperialismo.

Por mais que os movimentos sindicais estejam muito debilitados, ainda há instâncias desse tipo no Brasil, na Argentina, o pouco que sobrou no Peru, na Colômbia

Claro que sim. E também acredito que isso deve ser promovido, mas teria que ter muitos níveis diferentes. Seriam muitos movimentos dentro de um movimento. Por exemplo, a comunicação entre os Aimaras do Peru, Bolívia e Chile é poderosa. Esse é um mundo inteiro que você só precisa dar um conteúdo político, porque tem um poder econômico tremendo, uma identidade cultural enorme.

E isso também é verdade, digamos, não com essa força, mas para outros níveis. Agora os movimentos populares usam a internet. No caso dos indígenas amazônicos, por exemplo, eles estão globalizados. Então acho muito fácil estabelecer instâncias regionais, latino-americanas e caribenhas porque já há instâncias globais. Eles têm redes indígenas globais.

Estão presentes nas Nações Unidas. Têm voz, posições. Outro nível é o sindical. Por mais que os movimentos sindicais estejam muito debilitados, ainda há instâncias desse tipo no Brasil, na Argentina, o pouco que sobrou no Peru, na Colômbia etc. O outro é o nível dos governos progressistas, como o Fórum de São Paulo, o Grupo Puebla. Na televisão, a TeleSUR me parece muito importante, é algo que deve ser preservado como ouro e deve ser desenvolvida. Deveríamos ter também uma editora latino-americana, com pensamento latino-americano. Isso deve ser feito. E depois temos tudo oficial: Unasul, Celac etc. E acredito que há uma série de instâncias diferentes que podem ser promovidas simultâneamente, cada uma em seu campo, para criar um movimento amplo, mas múltiplo.

Como você avalia como estamos na esquerda, na batalha cultural, na batalha de ideias? Isso se acentua em Cuba, onde há uma disputa criada por setores da comunidade artística contra a Revolução Cubana.


O progresso político é, na verdade, o resultado da expansão dos direitos. Essa é uma primeira ideia e a segunda ideia é que você não deve retroceder. Embora obviamente há retrocessos no mundo, e há retrocessos em muitos casos, como no caso dos direitos trabalhistas. Além disso, os direitos devem ser vistos como coletivos e não apenas individuais.


São duas ideias básicas. Uma é a ampliação dos direitos, nos referimos aos direitos humanos. Se dizemos que queremos uma democracia diferente da democracia governada pelos bancos e policiada pelas Forças Armadas, estamos falando de uma democracia em que se cumpre a velha ideia liberal de cidadania. Os direitos não são algo estático, são dinâmicos, crescem, renovam-se ao longo dos anos e, portanto, vão se ampliando.

O próprio Peru é uma potência cultural. Ou seja, tem uma cultura antiquíssima, em grande parte mantida e também renovada. Tem a ver, sobretudo, com um número enorme de manifestações da vida coletiva. Acho que a esquerda fez bem em se conectar com isso e também em se identificar com os avanços dos povos peruanos que são diferentes em suas manifestações culturais, compreendê-las e não apenas ter uma ideia elitista de cultura. A ideia de que culto é quem lê livros, escreve romances, ou quem dança, ou é cantor ou faz música. Pois há formas de cultura que têm a ver com a vida coletiva cotidiana. Então eu acho que essa é uma ideia muito forte, que ainda bem a esquerda adotou e entendeu.

Os Estados Unidos são um país que desempenham um papel como produtor de ideias. Por meio de fundações que financiam pessoas como Vargas Llosa, membro da Sociedade Mont Pelerin de neoliberais, concedem bolsas e prêmios a escritores e intelectuais. Eles também produzem novos tipos de ciência social. Faz parte da luta cultural.


A Revolução Cubana teve e ainda tem essa força, mas em toda essa luta cultural é quase natural que haja dissidência e o que é difícil para um processo revolucionário é como você lida com a dissidência. Como você lida com elas? Porque a cultura é um florescimento, como dizia Mao. Bem, deixe todas as flores desabrocharem e isso é fundamental.


Em países sitiados, sob bloqueio, como Cuba, há limites. Se você começa a questionar o sistema social em que vive, aí já se encontra com os limites que a revolução cria. Como nos nossos países a democracia burguesa também os tem. E todos os países os têm, infelizmente; eu sou mais um amigo da plena liberdade de ideias.

Como você avalia o surgimento do Vox na Espanha e o uso de diferentes ferramentas e dispositivos da cultura de massa e da cultura popular para promover essa onda fascista que é sentida talvez mais fortemente na Europa do que aqui na América Latina?

A direita na Europa e também na América Latina acredito que tem dois aspectos: uma mirada retrospectiva sobre sua “grandeza” e um medo do presente. Esse retorno à “grandeza” é visão retrógrada. Viktor Orbán, na Hungria, fala sobre o grande império magiar. Thatcher foi precursora dessas ideias, pois queria voltar aos dias de grandeza do Império Britânico. Trump fala sobre a “grande América” que, claro, nunca existiu. A direita espanhola fala da Hispanidade, da Hispanosfera.

E tudo isso tem uma visão colonialista. O outro lado é o medo do estranho. No caso dos europeus, o medo dos islâmicos, do muçulmano, dos migrantes. Tudo isso é tratado, também no caso dos Estados Unidos, e também no caso da Espanha. Porque a Espanha de ultra-direita pensa que é branca e evoca sua aversão ao mouro, ao escuro.

O novo movimento francês fala da Renascença, da Renaissance, os poloneses, da Polônia imperial, porque houve um império polonês que durou muito pouco, mas apela às dúvidas e ressentimentos que eles têm em relação aos russos. Estou estudando história para entender melhor os fundamentos da extrema direita europeia e latino-americana, porque eles também recorrem à história. Esse é principalmente um debate histórico.