Tensão

O que está por trás dos protestos em Cuba

Ilha caribenha sofre com embargo unilateral dos Estados Unidos, medida condenada 29 vezes na ONU. Problemas comerciais devido à pandemia de covid-19 e movimentos intervencionistas se somam ao cenário de crise

reprodução/twitter
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"Nossa ação nas ruas é contra aqueles que promovem desordem a partir de uma agenda intervencionista, manipulando os sentimentos do povo através das carências e efeitos da covid-19", disse o presidente de Cuba, um dia após atos contra o governo

São Paulo – Cuba enfrenta uma grave crise econômica, principalmente em razão do bloqueio promovido unilateralmente pelos Estados Unidos e condenado no último mês pela pela 29ª vez na Assembleia Geral das Nações Unidas. A pandemia da covid-19 agrava o cenário, ao lado do endurecimento das medidas contra o país caribenho promovido durante o mandato do ex-presidente Donald Trump. Ontem (11), a situação chegou a seu momento mais crítico com a realização de manifestações contrárias ao governo do presidente Miguel Díaz-Canel.

Os atos foram registrados em 20 municípios da ilha e foram convocados por opositores do governo nas redes sociais. Quedas de energia e no serviço de internet estimularam que cubanos fossem às ruas. As falhas foram corrigidas e o presidente garantiu que elas ocorreram por problemas técnicos. Mesmo com a instabilidade, o canal oposicionista 14ymedio mostrou por quase uma hora algumas centenas de manifestantes caminhando sem interferência da polícia.

Os atos eclodiram em San Antonio de Los Baños, com uma concentração na Praça Matriz que reuniu de 200 a 400 pessoas. Na capital, Havana, cerca de 50 oposicionistas tentaram invadir a sede do Instituto Cubano de Rádio e Televisão. A polícia conteve a ação. “A revolução cubana não vai usar a mesma medida daqueles que atacam em espaços virtuais ou reais. Evitaremos a violência revolucionária, mas vamos reprimir a violência contrarrevolucionária. Quem ataca nossos agentes de ordem ataca o país”, disse o presidente cubano.

Do outro lado

Já o dia de hoje foi marcado por um movimento contrário. Cubanos marcharam nas ruas em apoio ao governo. Mesmo o presidente foi à cidade de San Antonio de Los Baños. “Nossa ação nas ruas é contra aqueles que promovem desordem a partir de uma agenda intervencionista, manipulando os sentimentos do povo através das carências e efeitos da covid-19. A contrarrevolução sonha com uma guerra entre cubanos. Não vamos dar este gosto. Respondemos com unidade, disciplina e trabalho”, disse Díaz-Canel.

Problemas reais

O presidente reconhece a validade de muitas críticas, especialmente sobre os apagões observados em estados como Artemisa. “Há uma minoria de contrarrevolucionários que tentou dirigir essas manifestações. Mas aqui temos pessoas insatisfeitas, com incompreensões, com desejo de expressar algum problema”, afirmou. O argumento para justificar as quedas no fornecimento de energia é o endurecimento do bloqueio estadunidense. Sanções dificultaram a aquisição de combustíveis para abastecimento de usinas termoelétricas.

“Muitos dos problemas que estão acumulados hoje não são pela pandemia, mas pelas restrições financeiras”, disse o ministro de Economia, Alejandro Gil Fernández. De acordo com a pasta, a demanda mensal do país por diesel é de algo em torno de 60 a 70 mil toneladas. Além do endurecimento do bloqueio, existem dificuldades de importação relacionadas à redução nos fluxos de capitais em razão da pandemia de covid-19.

Embora o governo reconheça as adversidades, o presidente denuncia o que julga ser uma escalada golpista no país e acusa o governo de Washington de forçar “revoltas sociais”. “A que se dirigia a imprensa internacional? Ao problema elétrico, ao desabastecimento ou às lojas em dólares? E qual é a causa dessas insatisfações? É o bloqueio, portanto é um discurso hipócrita”, disse o presidente.

Questão ideológica

O jornalista Breno Altman, em seu programa 20 Minutos Análise de hoje (12), analisou as repercussões dos atos de ontem em Cuba. “A imprensa de direita, mundo afora, tratou de colocar em suas manchetes e títulos que ‘milhares de cubanos’ teriam protestado contra o governo. Mesmo uma soma generosa à oposição não alcançaria dois ou três mil participantes. A imprensa cubana paulatinamente foi noticiando os fatos e as respostas do governo”, relatou.

Cortina de fumaça

As manifestações repercutiram no Brasil e no mundo. Jair Bolsonaro comemorou os atos e disse que “o povo cubano pede o fim de uma ditadura cruel”. Ao mesmo tempo em que dá declarações ameaçando cancelar as eleições do ano que vem, o presidente brasileiro disse que a ilha pede por “democracia”.

Nas redes, a investida dos bolsonaristas no tema soou para muitos como tentativa de encobrir os escândalos de corrupção e a má condução da pandemia por parte do governo. “A ‘questão Cuba’ está surtindo, no Brasil, os efeitos esperados pela extrema-direita: servindo a bolsonaristas como cortina de fumaça contra a CPI do Genocídio e dividindo as esquerdas em bate-bocas apaixonados e sem as nuances que a complexidade do tema exige. “Gasto de energia”, disse o doutorando em Ciência Política pela Universidade de Barcelona e ex-deputado federal Jean Wyllys.

O líder do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, também criticou o posicionamento dos bolsonaristas. Ele lembrou do bom desempenho do país no controle da covid-19. “Cuba teve 1.584 mortes por covid em toda a pandemia, menos do que qualquer bairro de São Paulo. Mesmo sob um bloqueio econômico perverso está desenvolvendo sua própria vacina. E tem gente por aqui pedindo SOS para Cuba”, ironizou.

Mais repercussões

Outros líderes mundiais se manifestaram sobre a situação cubana. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, declarou apoio aos atos contra o governo cubano. Por outro lado, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, adotou um tom crítico aos vizinhos e pediu o fim dos embargos econômicos contra Cuba, assim como exigido pela Assembleia da ONU. Além de afetar questões energéticas, o movimento norte-americano impede o fornecimento de remédios para cidadãos da ilha, caracterizando um problema humanitário.

“Quero expressar minha solidariedade ao povo cubano, acredito que se deve se buscar uma saída por meio do diálogo, sem uso da força, sem confronto, sem violência. A primeira coisa que se deve fazer é suspender o bloqueio a Cuba, como estão pedindo a maioria dos países do mundo”, disse Obrador.

A orquestração de movimentos de direita de outros países, alinhados com os Estados Unidos, também foi alvo de críticas de outra nação, a Rússia. “Consideramos inaceitável qualquer ingerência externa nos assuntos internos de um Estado soberano e qualquer ação destrutiva que favoreça a desestabilização da situação na ilha”, disse a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Maria Zajárova.